domingo, 27 de abril de 2014

A Nervura do Mal

Ontem fui ao Congresso de Clínica Psiquiátrica, infelizmente realizado em São Paulo (poderiam pelo menos levá-lo para Campos de Jordão, não é mesmo?). Algumas mesas foram interessantes por trazer profissionais de outras especialidades e sua interface com a Psiquiatria. Uma das mais concorridas foi a aula de Daniel Martins de Barros, sobre o Mal. Pergunta da mesma: “Maldade tem cura?”. No seu primeiro slide ele respondeu: Não. Boa tarde e obrigado pela atenção. Ele é bem engraçado e essa tirada quebrou o gelo da aula. O desenvolvimento do tema é que foi uma decepção. Para resumir, e não é difícil resumir o seu ponto de vista, o Mal não é um sintoma, não é uma doença, apenas caracteriza um comportamento não aceito pelo consenso de uma determinada sociedade. Um sociopata seria um membro da sociedade que utiliza as regras do jogo social para obter o maior prazer e o maior benefício para si, mesmo que para isso tenha que matar, mutilar ou roubar pessoas sem capacidade de defesa. O Marquês de Sade afirmava o seu direito a gozar e a se deleitar com o corpo do Outro, ou no caso, da Outra, mesmo se ela não concordasse com esse direito. O seu direito ao gozo era cerceado por uma sociedade hipócrita, que limita o desejo das pessoas para exercer o seu poder sobre elas. O Mal, portanto, segundo o Marquês de Sade,( e o Dr Daniel), deriva de uma regra e um consenso social, que pode e vai mudar com o tempo.
O argumento do Daniel também daria fundamento para uma rede de pedófilos que se sustentam na mesma relativização de conceitos: para eles, seu desejo e interesse sexual está no mesmo pé que a homossexualidade há meio século. Os homossexuais também já foram perseguidos e presos por terem seu prazer e desejo classificados como doença, tara e crime. Vai chegar a hora de seu “estilo de Vida” ser respeitado.
Por essa aula podemos fundar, inclusive, uma Associação de Psicopatas, esses incompreendidos. A sede principal seria, claro, em Brasília, mas cada cidade teria a sua sede. Roubar as verbas para medicamentos de velhinhas, desviar recursos para enchentes ou dar o nome de Gautama (um dos nomes do Buda) para uma empreiteira que faz obras inexistentes ou inacabadas com dinheiro público, ora, tudo isso é um life style diferente, que um dia vai ser aceito pela sociedade como perfeitamente normal quando essas regras restritivas forem superadas pelo tempo.
O Mal implica quase sempre em praticar ou deixar de praticar ações que vão causar sofrimento para si e para outrem. Implica em ausência de sentimentos e de respeito pelo Outro, gerando violência psíquica, física e sexual com o objetivo de acessar o próprio prazer em detrimento desse Outro, ou Outros. Para responder a essa questão, sobre a existência e tratamento do Mal, vou citar uma história de um mestre budista ocidental, Jack Kornfield, que ele diz ser verídica. Um menino de rua matou um garoto de sua idade, por volta dos 14 anos, apenas para mostrar para os membros de sua gangue que podia fazê-lo. Durante o julgamento foi sentenciado a alguns anos no reformatório. A mãe do menino morto olhou nos seus olhos antes de ser levado para a prisão e prometeu que iria matá-lo. Como ele era um menino de rua e seus laços familiares tinham sido desfeitos, ele não recebia visitas na prisão. A única visita que lhe apareceu em anos foi da mãe do menino que ele matara. Ela queria saber como fora a sua vida e entender um pouco o absurdo do assassinato daquele ser tão amado. Ela deu dinheiro para ele comprar coisas e conselhos quando ficava doente. Quando ele cumpriu o seu tempo na correção, ela ofereceu o seu quarto vazio para ele ficar por um tempo. O menino era manso e foi aceitando a generosidade da mulher pela sua falta de outra opção e falta de consciência do que aquilo representava. Depois de um tempo em que eles conviveram em paz a senhora perguntou se ele se lembrava que havia jurado matá-lo no dia do seu julgamento. Ele se lembrava, sim senhora. Nunca tinha conseguido esquecer. (Essa é a hora que todo mundo imagina que ela vai puxar uma pistola e fuzilar o rapaz, não é mesmo?). Surpreendentemente, ela respondeu que deu a ele a atenção e o respeito que nunca tivera e que aquele moleque que matou o seu filho tinha deixado de existir. Foi seu jeito de matá-lo. Agora ele poderia morar para sempre naquele quarto, se quisesse. Imagino que muita gente preferiria que ela tivesse metralhado o assassino de seu filho. Aliás, temos um correspondente dessa história aqui no Brasil, onde o pai de um menino sequestrado e assassinado, Yves Ota, visitou, orientou e deu assistência aos assassinos de seu filho, o que lhe permitiu dar algum sentido ao Mal absoluto que havia sido praticado.
Respondendo ao colega: sorry, Daniel. O Mal existe, independente da legislação. Existe a cura? Talvez a cura seja tão difícil como uma mãe comprar cigarros para o assassino de seu filho.

5 comentários:

  1. Muito lindo o seu texto!
    Lucia Andrade

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  2. Por nossa sociedade ter base em um conceito de ideais de perfeição (Platão), acreditamos que existe bem e mal, certo e errado etc. Não acredito que exista alguém bom ou alguém mal, e sim, pessoas com escolhas diferentes. Quando falamos que uma pessoa é má nos colocamos em um lugar de superioridade a ela e verticalizamos a sociedade, hierarquizamos. Na verdade somos todos "equivalentes" e o respeito deve residir neste conceito de equivalência. O fato de alguém não ter respeito a vida não o torna um ser humano mal, só o torna um ser humano com uma escolha diferente por falta de compreensão do que significa "respeito a vida". Ninguém e melhor ou pior, só estamos em momentos de aprendizagem distinto, com escolhas diferentes, mesmo porque pouco nos conhecemos para sabermos se deixamos de fazer algo considerado " mal" por contenção dos instintos, medo, ou por termos compreendido em nossa alma. A.M.

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  3. Oi, Marco. Eu não disse que o mal não existe, mas que buscar na medicina toda sua origem é errado. Você entendeu que os critérios para o que é mal mudam, mas eu não disse isso - afirmo sim, que os critérios para o que é doença mudam. Dessa forma a analogia com os pedófilos não se sustenta, pois independente de ser ou não doença, a pedofilia é má na medida em que suas vítimas não têm capacidade para consentir (algo que mudou, para melhor, conforme a consciência da sociedade amadureceu).
    Sim, o mal existe, independente de legislação. O que não acho que existe é cura (com certeza não na Medicina, tema exclusivo da palestra).

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    1. Muito obrigado pela sua resposta e pelo cuidado de seu esclarecimento. Vou colocar esse assunto em outro post. Escrevi sobre outro assunto hoje por não ter visto a sua resposta, que aprofunda e traz interesse ao debate.

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  4. Olá! Concordo que buscar na medicina a origem do mal está "errado". Voltamos ao conceito dual de certo e errado e bem ou mal. Eu não acho que o mal existe e, por não acreditar em bem ou mal não acho que existiria cura seja pela medicina seja por outro caminho.(o que fugiria do tema exclusivo da palestra)
    Quando dizemos que a pedofilia é má por não terem as vítimas a possibilidade de consentir , vemos assim porque nossas raízes , nossas bases, vem de conceitos religosos do que é mal, vem dos ideais que temos de "certo e "errado" ou talvez, de outras bases antigas. Não estou defendendo de maneira alguma o que é certo ou errado, ou bem ou mal, somente estou dizendo que um pedófilo acaba não contendo seus instintos primitivos faz escolhas baseados na não compreensão do seu ato., isso não o torna mal, só o torna um ser humano que não consegue conter seus instintos e não compreende que está tirando o direito de escolha de outro ser humano ( vítima). No ponto de vista dele, não acredito que ele tem total percepção de que seu ato é de desrespeito ou "errado" e a cura disso não está na medicina pois a medicina trata mais da consequência do que da causa. Só acho que somos todos muito parecidos vivendo experiências diferentes onde o que é necessário uma alma passar para criar sabedoria sobre aquele assunto não é para outra. Isso não é bom ou mal, só é.
    Sö estou expondo outro ponto de vista um pouco além da palestra pois vejo que temos necessidade dos conceitos duais e isso fecha possibilidades para tudo que está entre ou além disso.

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