domingo, 6 de abril de 2014

A Vida e o Vagalume

A moderna Psiquiatria criou escalas para avaliar quase tudo. Uma das escalas dessa Babel de entrevistas padronizadas é a de Estressores. Por exemplo, numa escala de zero a seis, o estressor de um divórcio é grau 5. Na vida e na escala, a perda de um filho é pontuação máxima, grau 6. Em nossa prática clínica, são casos bem difíceis de se atender, pois é uma dor que não há o que alivie ou relativize.
Conheço uma história budista sobre o tema. Uma mulher que perdeu seu filho acorreu desesperada ao Buda para trazer o seu bebê de volta. Ele deu a ela uma tarefa muito dura: mandou bater de porta em porta e perguntar nas casas quem nunca tinha perdido um ente querido. Cada vez que encontrasse uma casa com essas características, ela pegaria uma semente de mostarda. Depois de passar o dia inteiro em sua busca, não encontrou nenhuma família que não tivesse passado por alguma perda dolorosa (grau 5 e 6 da escala de estressores. Mas o Buda não mencionou nenhuma escala. Na época, o bom senso já fazia essa função). Ela olhou a cidade do alto e viu as casas com suas luzes acesas, algumas apagando para iniciar o sono e percebeu como a vida é uma luz delicada que se acende e depois se apaga. No dia seguinte, não tinha nenhuma semente para levar, mas estava pronta a seguir o Buda e entender a verdadeira natureza daquela luz que se acende e se apaga com tanta fragilidade.
Uma paciente que passou por essa perda devastadora, perdeu uma filha, me relatou que um membro da família começou a blasfemar e xingar a Deus e todos os seus santos inúteis, que não conseguiram atender à tantas preces e clamores. No filme que eu citei há poucos posts atrás, “Philomena”, a tensão dramática e cômica do filme é garantida pelo contraste entre um elegante e sofisticado jornalista ateu e uma simplória enfermeira aposentada, que há cinquenta anos fora forçada a dar o seu filho para adoção e parte um uma jornada reveladora para tentar encontrá-lo. O jornal vai pagar pela viagem pois tem interesse em publicar a história. Um dos atritos que inevitavelmente vai ocorrer com a dupla se dá quando o jornalista se irrita com a fé católica da velha senhora. Comenta uma manchete de um jornal turco, retratando um terremoto que matou mais de vinte mil pessoas na época: “Deus mais uma vez supera o Terrorismo”. Ela fica muito brava com a comparação e menciona que prefere acreditar em Deus do que ser um cínico amargurado como ele. Auch! A velhinha aposentada não tinha nada de boba.
Não sou teólogo nem acho que a finalidade desse blog é discutir questões sobre a natureza e a percepção da divindade. Mas uma coisa que parece um engano muito frequente é imaginar que Deus é um velhinho de barba branca como um quadro de Michelângelo. E que ele paira acima das nuvens mandando terremotos e se fazendo de surdo diante das preces e aflições humanas. Jung dizia, em tom de brincadeira, que “Deus é tudo o que se opõe à minha vontade obstinada”. Ou seja, não adianta ser um bom menino e imaginar que vai ter mais créditos com o Homem. Até porque ele não é um homem, mas um princípio intrínseco à vida. E, como tal, invisível, intocável, misterioso em sua Ordem no meio do Caos.
Coisas ruins acontecem com gente boa, sou capaz de testemunhá-lo todo dia na escuta do consultório ou abrindo um jornal. Gosto de imaginar a cena da mãe desesperada, olhando a cidade do alto do morro, vendo as luzes se apagando e acendendo, como é a própria vida. Ela não teve o seu filho de volta e não insultou o Buda por isso. Na minha imaginação, penso nela compreendendo que nesse mundo estamos todos de passagem, e que a única forma de dar algum sentido a esse absurdo é espalhando o amor que ela tinha pelo bebê para todos os seres que continuam em sua jornada. É uma tarefa muito, muito dura. É mais fácil virar uma pessoa cínica e amargurada.

2 comentários:

  1. Oi Spinelli,

    Seu texto é lindissimo!
    E é também extremamente profundo. Acho que a maior dificuldade do ser humano (inclusive os religiosos) é aceitar a perda!
    bjos,
    Lucia

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  2. Insightful! Quanta sutileza e profundidade! Muita luz pra você (mestre)!
    Bjs,
    Priscila

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