segunda-feira, 19 de maio de 2014

Jornada ao Centro de Si

Posso me candidatar facilmente a garoto propaganda do Netflix. Adoro sobretudo ter acesso a filmes e documentários que não se acha em qualquer lugar, já que eu sou uma perfeita negação em ficar baixando filmes e séries da internet. Vi um documentário desses que ninguém vê, uma produção caseira chamada “The Dhamma Brothers”, em tradução livre, “Os Irmãos do Dharma”. Esse trabalho documenta um programa de Meditação Vipasana aplicado por dez dias a prisioneiros de alta periculosidade de uma prisão no Alabama. Os estados do Sul dos EUA não se caracterizam por tratar os prisioneiros com muita consideração, pode-se assim dizer. O psicólogo do complexo, meio cansado de nada conseguir fazer para ajudar aqueles presos, conseguiu propor e viabilizar esse trabalho. Cerca de quinze presos passaram dez dias fazendo a meditação Vipasana, assistindo palestras confinadas a um espaço no ginásio sem poder trocar nenhuma palavra com os colegas, respeitando o Nobre Silêncio. O estranho é que eles conseguiram esses voluntários que, mais estranho ainda, realmente se empenharam em cumprir o programa, sem nenhuma tentativa de matar os instrutores.
Durante a aplicação do trabalho em que o Silêncio era o principal e invisível personagem, os presos experimentaram a sensação de estar numa “prisão dentro da prisão”, como alguns descreveram. Não havia como fugir do confronto, para alguns, terrível, do que viria de seu mergulho interior: os instrutores chamavam isso de Período de Tempestade, em que a imersão na meditação e no silêncio traria imagens, pensamentos, lembranças perturbadoras que não poderiam ser verbalizadas nem compartilhadas. Um dos presos descreveu a imagem de sua filha de quatro anos, morta num acidente banal em um brinquedo de parquinho. O outro lembrou da cena do crime que o mandou para aquela prisão. O outro começou a chorar copiosamente, num lugar em que chorar na frente dos outros não é exatamente boa política.
Nos últimos posts acabei debatendo a natureza do Mal e a sua possibilidade de abordagem pela Ciência Médica, quais são os limites do que pode ou não ser tratado. Pois esse filme veio responder a algumas dessas questões, e outras também. Alguns daqueles presos puderam contemplar, com alguma perplexidade, o absurdo do ato criminoso que haviam cometido há décadas, mas do qual não podiam fugir ou retroceder. Não se reconheciam no moleque que havia feito aquilo. Tudo isso aparecia naquelas horas de silêncio e de olhar interior. O documentário seguiu os presos por um período após o trabalho: eles estavam nitidamente transformados, para estranheza dos colegas.
O que me emocionou como médico e terapeuta foi a confluência entre esse processo vivido na meditação e a psicoterapia profunda, tão atacada nas últimas décadas. Jung disse uma vez que ninguém vai ao Paraíso sem passar pelo Inferno. Talvez estivesse citando a “Divina Comédia”, onde Dante Alighieri desce às profundezas do inferno e sobe até o Paraíso procurando por sua amada Beatrice. Os cognitivistas e programadores neurolinguísticos acham que esse mergulho não é necessário: basta reprogramar as falsas crenças e afetos e poderemos atingir o Paraíso da Saúde Mental e Inteligência Emocional. Os “Irmãos do Dharma” desmentem essa afirmação. A entrega ao Grande Silêncio e a Introvisão trouxeram a tempestade e a bonança para os presos. Os monstros apareceram, foram vistos e observados, até perderem a força. O que ficou em seu lugar foi uma Paz profunda, que resistiu à volta dos presos ao seu ambiente de reclusão e violência.
As Psicoterapias Profundas procuram por esses monstros e olham em suas caras, para que percam a sua força. Nem sempre esse processo vai até o seu final, nem sempre os resultados são os desejados, mas talvez seja um dos últimos lugares onde as pessoas podem silenciar e olhar para o seu mundo interno, num mundo de violência e exterioridade. Ela tem muito a aprender com aqueles instrutores que terminaram o seminário abraçando os homens que a sociedade quer esquecer.

2 comentários:

  1. Obrigada por trazer este estudo para nosso conhecimento.
    Muito interessante. O silêncio é transformador; mas é tão difícil de se chegar até ele!
    bjos,
    Lúcia

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  2. Obrigada por trazer este estudo para nosso conhecimento.
    Muito interessante. O silêncio é transformador; mas é tão difícil de se chegar até ele!
    bjos,
    Lúcia

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