domingo, 7 de dezembro de 2014

Infecções Psíquicas

Uma situação angustiante na prática clínica é presenciar os quadros em que a pessoa que procura ajuda e que fica presa num emaranhado de pensamentos, geralmente, pensamentos negativos a respeito de si ou do mundo. Nada do que se fala ou se faz possibilita o rompimento daquela cadeia de formas-pensamento que capturaram aquela mente de maneira quase permanente. O mais difícil é criar uma perspectiva que o sofrimento está sendo causado por um Sistema de Crenças, um Sistema de Pensamentos que pode estar lá há muito tempo, mas ainda assim é apenas um emaranhado de pensamentos que se reproduzem como um vírus em nossa Psique. Vou dar um pequeno exemplo: estava lendo um pequeno livro budista que eu não consigo terminar, portanto, estou sempre voltando para o seu começo. Provavelmente não vou conseguir lê-lo inteiro, por questões difíceis de precisar: não sei se o livro é chato ou se eu sou chato. Podemos ser ambos chatos, ou a parte do começo seja a que eu queira repetir. Não tenho uma opinião definitiva sobre o assunto, como podem notar. O fato é que o autor descreveu uma situação com um monge de seu mosteiro que me fez pular na cadeira: esse monge tinha um pequeno centro de meditação e formação, que foi próspero e teve algum sucesso durante algum tempo, depois passou por alguns infortúnios, como um pequeno incêndio e foi perdendo adeptos, até ficar inoperante, como as vídeolocadoras ou as empresas de películas fotográficas. O autor do livro descreveu que esse monge, como muitos executivos que são substituídos por profissionais com a metade de seu preço e idade, passou a sentir um cara muito azarado. Ele dizia que não conseguia ter sorte desde a sua infância. As pessoas não deveriam confiar projetos para ele, pois simplesmente ele não conseguia ter sorte e os projetos tendiam a ir para as cucuias em sua mãos. O tal monge carequinha e fofinho foi adoecendo de infelicidade e morrendo. Cacete, o psiquiatra aqui presente pensou, o cara teve uma depressão e foi afundando dentro dela até se apagar. Meditação, dieta vegetariana e uma vida numa comunidade afetiva e protetora não impediram o carequinha de afundar numa depressão que criou vários incêndios em sua vida interior e exterior.
Se estivéssemos em um Congresso de Psiquiatria eu já ouço os comentários de que obviamente o monge teve um quadro depressivo, derivado do estresse de comandar um núcleo de meditação e da sua condição genética. A falta de tratamento fez a condição se complicar, causando várias perdas de performance e isolamento social, até a evolução negativa final. E olha que os colegas estariam certos, ou estariam interpretando o quadro de maneira criteriosa. Mas estariam perdendo um detalhe importante, que geralmente fica na conta dos pensamentos pessimistas gerados pela Depressão: o pequeno monge teve uma Infecção Psíquica, que começou com um foco inocente e foi virando gradualmente uma infecção generalizada, como vemos tantas vezes em nossa prática clínica. Essa forma-pensamento que estava na mente desse monge deve ter se implantado em sua infância, quando olhava as outras crianças jogando e pensava que ele tinha nascido para não ter sorte. Esse pensamento ficou implantado em suas redes neurais e deve ter criado os seus filhotes em sua vida, criando um sistema com um Pensador e um Comprovador. O Pensador afirma: “Eu nasci para não ter sorte”. Cada pequeno infortúnio é usado pelo Comprovador para confirmar o que o pensador afirmou. Nos gibis de minha infância, essa dupla era representada por primos engraçadas, o Pato Donald e seu primo, Gastão. Gastão passa o tempo todo contando vantagem sobre a sua sorte. Se o pneu de seu carro fura, uma pata maravilhosa passa na estrada e lhe dá carona. Gastão se diverte: olha como eu tenho sorte. Donald, por sua vez, está sempre emputecido por sua falta de sorte. Se o pneu de seu carro fura, ele abre o porta-malas e vê o seu estepe também furado. Ele esbraveja e começa a cair uma chuva, com uma nuvem sobre a sua cabeça. E assim vai a historinha. Quanto mais se irrita com a sua má sorte, mais azarado ele se sente, e mais infortúnios acontecem. Parece familiar?
Uma visão de Psiquiatria e mesmo de Medicina mais profundas deveria começar a interferir no Sistema de Crenças disfuncionais das pessoas. Isso não significa distribuir manuais de Psicologia Positiva ou de Autoajuda, mas ajudar as pessoas a identificar essas infecções psíquicas e aplicar o entendimento e o trabalho interno para identificar, questionar e criar alternativas para esses sistemas de pensamento. A doença é uma oportunidade para tratar essas, e outras, infecções. Muitos médicos e muitos pacientes passam batidos por essa oportunidade.

2 comentários:

  1. Bom texto! Me lembro o filme " a origem" com Leonardo di Caprio! A.M.

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  2. Que bom que tive a oportunidade de tratar com vc uma infecção psíquica ou seja lá o nome que possa dar ao que sentia... rsrsrsr. Estou bem e continuo acompanhando seu blog. Em janeiro vc vai trabalharl? Quero uma consulta!

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