quinta-feira, 9 de julho de 2015

Jornada Noturna

Um amigo e eventual leitor desse blog uma vez me convocou para escrever um capítulo em um livro de Psico Oncologia, sobre aspectos psicodinâmicos e simbólicos do paciente com Câncer. Imaginei que o paralelo seria com um Campo de Concentração, mas a metáfora poderia criar mais incompreensão do que esclarecimento, eu fui empurrando o projeto com a barriga e ele acabou não saindo. Muita gente boa poderia se ofender e essa não seria a ideia do texto.
Com a ascensão do Nazismo ao poder, Hitler tinha um plano de expropriação de bens e posições dos judeus alemães. Pensava em deportá-los, ou realocá-los em outra região. Quando eram retirados de suas casas e enviados para Campos de Concentração, partiam inicialmente com a promessa de que a situação seria apenas uma transição, para serem enviados a outro país ou um lugar melhor. O extermínio dos judeus da Europa e do Leste Europeu, a chamada “Solução Final” deu-se já durante a Segunda Guerra, quando os campos de prisioneiros viraram oficinas de morte em escala industrial, algo nunca visto antes em nossa história de barbáries. Muita gente sobreviveu milagrosamente a esses campos de concentração, buscando em si o mais profundo instinto de sobrevivência.
Ter o diagnóstico de uma doença grave muda definitivamente a vida de uma pessoa. A rotina de tratamentos e procedimentos pode ter a mesma conotação de ser enviado a um lugar que não é a sua casa, ser desprovido de sua rotina e profissão para virar uma outra pessoa, um paciente, que tudo vai fazer para jogar o novo jogo e preservar a própria vida. Pouco a pouco, o sujeito vai sendo despojado de sua própria humanidade não pelos nazistas, mas pela doença e seus tratamentos: a roupa passa a ser o pijama ou a camisola do hospital, os tratamentos são muitas vezes mutilantes e dolorosos, e tudo se faz no sentido de se perder os anéis para preservar os dedos. Já trabalhei em um enfermaria de doentes oncológicos e, como o psiquiatra Victor Frankl nos campos de concentração, vi passar diante de mim o melhor e o pior da raça humana. O medo e a experiência transformam as pessoas, nem sempre para melhor, mas havia muitos olhares de gratidão e solidariedade em meio ao cenário de guerra. Uma atitude combativa e bem humorada era a melhor resposta para quem lutava pela própria cura.
Joseph Campbell escreveu o incrível “Herói de Mil Faces”, e nele há um capítulo sobre a Jornada do Herói que, muitas vezes, precisa descer até os porões do Inferno para cumprir seu destino. Chamou a travessia de Jornada Noturna, um passeio pelo coração das trevas. Muitos se perdem nesse caminho, muitos morrem tentando atravessá-lo, outros tantos se escondem e imaginam que alguém vai fazer a caminhada por eles.
Várias situações em nossa vida podem ser comparadas com a Jornada Noturna: o tratamento de uma doença grave, o desemprego, a perda da própria identidade e a necessidade de reconstrução de si ou do significado perdido. Diariamente testemunho a coragem e a luta das pessoas para superarem uma depressão grave, a perda de um ente querido ou o fim de uma carreira ou casamento. Como os prisioneiros de um campo de concentração, essas pessoas são retiradas de sua vida e de seu mundo e lançadas em uma condição completamente nova, em que vão ceder as suas reservas de dinheiro e energia vital no sentido de completar a travessia. Eu tenho o privilégio de estar junto dessas pessoas, procurando pela luz da aurora no meio da noite escura.

3 comentários:

  1. O padrão da sua progressão aritmetica de publicações é interessante. Você gosta de harry potter...nada como dar google para comprar uma varinha do dumbledore e parar aqui.

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  2. Belo texto, mais um... até mesmo de um assunto tal triste... Fico muito feliz que faz parte de minha vida!!!

    Bjo

    LSL

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  3. Me curei de uma depressão no seu consultorio. Minha individuação foi conquistada em parceria com vc. Quando veio o cancer eu ja tinha todos os elementos para essa travessia. Senti a sua presença em muitos momentos. A terapia continua sim depois de terminada. Hoje a luz da aurora brilha dentro de mim como nunca brilhou. Obrigada, meu querido! Beijoka

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