domingo, 14 de maio de 2017

As Paralelas

Atendi uma vez uma moça que tinha participado de um Reality Show, acho que desses de cozinha, de chef, ou de bolo, sei lá, não sou nada bom com esse tipo de programa. Acompanhei o Big Brother um ano que meu filho curtia e era um pretexto para assistirmos juntos e torcer por um candidato ou torcer para cair o biquíni das moças no banho. Reality Show? Quando se coloca uma câmera apontada, toda a realidade desaparece. Vivemos numa sociedade de espetáculo, tudo sob a câmera é uma encenação. A moça entrou no programa por acaso, caiu no gosto do público, virou finalista. Quando acabou, passou a ser reconhecida na rua, amada, admirada, detestada, por ter aparecido dentro das casas de milhões de brasileiros em horário nobre. A imprensa a procurava, quais serão seus próximos passos? Ela passou a ser esmagada por sua Persona televisiva. Começou a ficar com medo de sair de casa. Recusou os convites, os projetos. Sem perceber, engajou-se num projeto de morte: decidiu, ao contrário da imensa maioria, que iria matar aquela sub celebridade que o programa, a mídia, a família e os patrocinadores queriam transformá-la. Voltou para o anonimato e passou um bom tempo trancada em casa, até ser esquecida. O problema foi o custo da reclusão: não conseguia mais sair de casa, não sabia qual carreira seguir, nem como se reconectar com o mundo. Falei bastante sobre isso na única consulta que tivemos. Ela falou bem de mim para a terapeuta que a encaminhou, mas nunca mais apareceu.
Lembrei dela quando li sobre a morte de Belchior. Há poucos anos ele havia virado um trend topic de redes sociais por ter abandonado uma Mercedes no estacionamento do Aeroporto e sumido. Aquilo parecia uma cena suicida. Foi tanto o bafafá que ele acabou aparecendo para avisar que estava bem e vivendo no Uruguai, já que era apenas um rapaz latino e americano. Morreu recluso numa pequena cidade do Sul, com uma Dissecção de Aorta, no sofá da sala. Vagou de cidade em cidade, protegido por um pequeno círculo de amigos que o apoiavam no seu processo de morte do cantor e compositor Belchior, décadas antes do desfecho noticiado pela imprensa. Tinha o projeto de fazer mais de três mil ilustrações para a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Disse para uma repórter que as suas músicas já estavam gravadas na memória da cultura e já tinham a sua vida. Agora ele precisava cuidar daquele projeto. Dizia também que planejava retomar sua carreira. Parecem todos projetos inexistentes, que ele usava para enganar a si mesmo e a quem o procurasse. O que foi provavelmente acontecendo foi um afastamento entre criador e criatura, onde o artista, o cantor, o poeta, o desenhista, começaram a tomar distância da criatura, o artista pop, a celebridade, o Belchior. Abandonar o carro e sair fugido da própria vida. Como a moça do reality show, Belchior teve a urgência de se livrar de si mesmo e do que as pessoas esperavam dele. Acho que, infelizmente, acabou se perdendo de si e da realidade. Passou a viver entre livros e discos antigos, os seus últimos interlocutores.
Nessa época de retração econômica e recessão brutal, todo dia chega ao conhecimento histórias de pessoas que se perdem da própria identidade, ou perdem o caminho dessa entidade abstrata chamada Mercado. O isolamento vai gerando uma realidade paralela, onde projetos pouco realistas enchem o tempo, enquanto se espera que o tempo dê marcha a ré para o tempo em que as coisas fluíam e os ventos da vida estavam a favor. Não é fácil recomeçar e talvez seja ainda mais difícil reconhecer que se pegou um atalho errado e recomeçar do zero.
Semana passada fui para um simpósio no Rio. Do ônibus que nos levou ao local do evento eu via que o Cristo Redentor mantinha seus braços abertos. A noite estava bonita e, durante todo o caminho, os versos tocavam em minha cabeça: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu/ Copacabana, essa semana o mar, sou eu/E as borboletas do que fui pousam demais/Por entre as flores do asfalto em que tu vais”. O poeta pode morrer esquecido, ou exilado de si mesmo, mas ele no final das contas, tem toda razão: as músicas tem vida própria e sabem cuidar de si mesmas. E continuam soando dentro de nós.

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