domingo, 6 de agosto de 2017

Morrer de Alguém

Mencionei em post anterior uma palestra do escritor moçambicano/português Mia Couto no Brain Congress em Porto Alegre, em Junho desse ano. O fio condutor de boa parte da sua exposição foi sua experiência, na África, com um caçador que estava perdendo a visão mas ainda assim conseguia enxergar o rastro da caça com os olhos de seu coração. Mia Couto ficou tão tomado pelo encontro que marcou uma consulta com uma oftalmologista na África do Sul, tentando socorrer o amigo. No dia da consulta, compareceu o irmão do tal homem, que “tinha os mesmos olhos”. Mia imaginou que, já que o homem falava e vivia no meio de metáforas, aquela fosse apenas mais uma verdade simbólica que não era verdade no mundo real. Mas estava enganado. A médica observou que a degeneração da Retina do homem que foi, o paciente “errado”, tinha base genética e tiraria a visão dos dois irmãos. Mia concluiu que realmente tinham os mesmos olhos, que compartilharam a luz e agora adentrariam juntos o escuro. Quando pode voltar a visitar a África, não se sabe quanto tempo depois, o escritor recebeu a notícia que o velho caçador havia morrido. Como bom ocidental e bom curioso, quis saber do que o homem tinha morrido. Como essa cultura vive por meio de metáforas, disseram que ele não havia morrido de algo, mas de “alguém”. Quando uma pessoa morre, morre pelo caminho de alguém. Como já escrevi no post, lembrei muito de meu pai nessa palestra. Meu pai morreu “de” minha avó. Minha avó morreu da morte de sua mãe. Aos oito anos de idade, seu mundo desabou com a morte prematura de sua mãe na era pré antibióticos, e a menina que seria a minha avó viu seu pai cair no mundo e foi mandada com sua irmã para o Colégio Interno. Ser mandado para o Colégio Interno era a ameaça fantasmagórica de muitas infâncias antigas. Os pais, quando perdiam a esposa, não se viam na obrigação de cuidar dos filhos. As crianças órfãs eram distribuídas entre outros familiares ou entregues para a criação de padrinhos. Chico Xavier viveu e morreu de sua mãe, também falecida precocemente. A sua mediunidade se manifestou muito cedo quando justamente conversava com a sua mãe, enquanto sofria abusos na mão de uma tia amarga e violenta. O fato é que minha avó passou a vida com medo de ser roubada, com medo de perder tudo o que tinha. Quando ela morreu, foi um grande trabalho a limpeza de seu apartamento. Ela guardava de tudo, barbantes, papeis de presente, caixas. Hoje seria medicada como acumuladora. Ela ficou a vida toda temendo que a vida lhe desse outra rasteira. Meu pai internalizou profundamente esse medo e também buscou defender-se do devir, buscar a segurança e evitar as altas e as baixas das marés da vida, que sobem e descem para todos. Esse medo teve um papel importante na sua morte prematura.
Morrer “de alguém”, então, é uma percepção profunda e metafórica da Ferida Arquetípica que nos constitui. O tal do Pecado Original, na minha opinião, é exatamente esse: é vir ao mundo com a tarefa de cuidar da ferida de seus antepassados, sua cultura, sua história. A sensação mais triste do Ego, que é a da Separação. Nosso mundo darwiniano reforça nas pessoas a sensação de solidão e de Separação. Chico Xavier encontrou em seu mundo interno o caminho de sua mãe. Teve sorte de viver em outro tempo, pois no nosso seria medicado e diagnosticado com Esquizofrenia Infantil. Eu prefiro imaginar que ele achou dentro de si o que buscamos em nossas terapias, que é cuidar da ferida para não morrer dela. Evitar de morrer da ausência de alguém que pode nunca ter partido.
Mia Couto fez uma recomendação muito séria para a plateia de psiquiatras, neurologistas e neurocientistas que bebiam de suas palavras: nunca percam a sua Alma no lidar com os seus pacientes. Nunca esqueçam da imensidão que é a vida de cada um. Eu diria para ele que a grande questão é estar junto quando se atravessa grandes desertos no escuro. Isso é clinicar com Alma.

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