sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

A Pintura de Si

Não, não vou falar de final de ciclo e começo de outro, nem dos riscos psiquiátricos desta época do ano. Depois de alguns finais de ano desse blog, não vou usar textos de Borges embora goste muito deles.
Estou travado neste texto, que não sai desde ontem, porque a imagem de um filme não sai da minha cabeça. O filme não é nada conhecido nem fácil de achar: o título em Português é “Seis Graus de Separação”, o que é estranhamente fiel ao título em Inglês, que também é o nome da peça de teatro que originou o filme. Baseado numa história real, como hoje está na moda, o filme de 1993 se inspira num caso policial em que um jovem se fez passar como filho do primeiro ator negro a ganhar um Oscar, Sidney Poitier (na vida real pai de quatro meninas). O rapaz roubou uma agenda de endereços de seu amigo e aparecia na casa dos pais dos alunos de Harvard simulando ter sido assaltado. Entrava, contava histórias, falava sobre o seu “pai” e encantava as pessoas com a sua inteligência e histórias que roubava de outras vidas que não a sua. Ele entra no apartamento e nas vidas de Flan e Ouisa, ricos moradores das proximidades do Central Park, em Nova York. Flan é um marchand, negocia obras de arte caríssimas, tem um Kandinski na parede, mas, vamos saber durante o filme, está quebrado e vende o almoço para ter o jantar. Como Paul, o visitante mentiroso que se faz passar por outra pessoa, Flan é um jogador fingindo ser um miionário refinado e extremamente culto. A história é narrada em flashback, em todos os almoços e eventos sociais que o casal frequenta e delicia os amigos com os detalhes pitorescos da história do rapaz, que se fez passar por amigo de seus filhos e filho de celebridade. Flan e Paul não são tão diferentes. Flan vive de uma imagem que sabe falsa, nessa era de simulacros. Estou lendo um livro sobre a construção da imagem da presidente Dilma, a Mulher Sapiens. Sua assessoria a apresentou como uma intelectual ávida pela leitura, com Mestrado e Doutorado em Economia pela Unicamp. Dilma não sabe citar nenhum título de nenhum livro que leu, não acerta a citação de nenhum autor e nunca completou seu Mestrado nem muito menos seu Doutorado. Como o filme discute, a construção de uma Persona não tem nada a ver com o que está debaixo da máscara. O problema é que a máscara, um dia, cai. Mas voltando ao filme: Flan é um maravilhoso contador de histórias. Numa delas ele conta como virou um colecionador (na verdade um vendedor) de Arte. O seu filho estava nos anos do Ensino Fundamental, era a exposição das pinturas das crianças e ele percebeu que as crianças do Terceiro Ano pintavam como artistas expressionistas. Maravilhado, ele perguntou para a professora como conseguia fazê-las pintar daquele jeito? A professora respondeu que não sabia, não tinha um método claro: ela simplesmente percebia a hora de tirar aquilo de dentro das crianças. Foi aí que Flan descobriu quem ele era: um pintor sem o seu quadro, “A painter without a painting”. Por isso ele vagava pelo mundo tentando obter as pinturas que não conseguia pintar. É um estranho momento de reflexão e verdade na vida deste bufão. Ele corria de quadro em quadro procurando ter o que não conseguia pintar.
Este filme e essa cena são muito caros a mim por dois motivos: a professora, com sua fala, me lembra muito do que há de arte no trabalho terapêutico, o que é difícil de replicar. Não há como precisar o momento certo de extrair algo da Psique que está em terapia. Só que há o momento e, se o terapeuta está atento (e à espreita), o trabalho vira uma bela tela expressionista. O que está oculto, vem à luz, para surpresa de terapeuta e paciente. E o que está oculto e vem à tona pode ser a cura, em si.
O segundo motivo é Flan. Somos todos um pouco como ele: pintores sem um quadro. Pintores em busca de sua pintura. A diferença é que sabemos, espero, que essa pintura que ainda pintamos, não se pode comprar nem obter. A pintura é de nossa trajetória, nossa vida. Já a temos, em nosso interior, mas não devemos parar de pintar, até ver o quadro maior. Isso leva tempo.
Feliz 2016 para os leitores desse blog.

4 comentários:

  1. Belo texto pra começar 2016, Mestre.

    Grande ano pra Você!

    Edison

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  2. Obrigada Marco, por contribuir para o nosso ano ser melhor, através das suas maravilhosas reflexões.

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  3. muito bom texto...em uma época em que a capacidade de concentração virou item de colecionador, espero que os terapeutas quem vêm surgindo consigam se manter capazes de direcionar a sua própria :)

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  4. Maravilhoso texto feliz 2️⃣0️⃣1️⃣6️⃣ pra você

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