domingo, 24 de janeiro de 2016

Corpo Estendido no Chão

Continuo assistindo a série de Contardo Calligaris, “Psi”, que gravei da TV a cabo, em sua segunda temporada. Cansei de meter o pau ou de tentar ver nela qualquer traço de verossimilhança com a prática bruta das consultas e da clínica. O psiquiatra da série é uma espécie de Superman que negocia com presas amotinadas, interpreta quem passa na sua frente e discorre com distância quando questões de vida e morte passam pelos seus divãs. Como diria a neo peemedebista Marta Suplicy, relaxa e goza. Assisto e me divirto, ponto. Num episódio nosso super herói vai a um Pronto Socorro visitar uma paciente com sua amiga e colega Valentina. Uma outra moça agoniza na maca ao lado, tentando falar algo. Sua pulseira tem seu nome, Lara dos Santos. Ele recosta a cabeça e ouve entre sussurros: “Fui violentada”. Apalpa o abdomen da moça e percebe que está rígido, as extremidades frias e arroxeadas. Ele chama a plantonista, que a leva imediatamente para o Centro Cirúrgico. Carlo Antoninni, o alter ego de Calligaris, volta no dia seguinte para saber da moça, após uma noite mal dormida em que não conseguiu tirar o caso de sua cabeça. Recebe a notícia de que ela fora a óbito no final do plantão. Carlo começa uma longa jornada para esclarecer o que tinha acontecido com aquela moça, que, menciona, acabou virando sua paciente depois de morrer. O fio condutor de sua busca é a frase: “Fui violentada”, que se torna enigmática porque não há sinal de violência sexual e o legista afirma que a morte foi por suicídio. Carlo faz uma autópsia psiquiátrica para entender o que aconteceu com a moça. O episódio se chama: “O que aconteceu com você?”.
Há alguns dias eu estava saindo cedo de meu consultório para comprar umas coisas no mercadinho da esquina. Dois prédios adiante do meu havia duas ambulâncias do Resgate. Senti um aperto na boca do Estômago quando vi os paramédicos colocando a maca vazia dentro da ambulância e fechando a porta. Já imaginava o significado disso. Continuei andando e vi homens de terno e seguranças conversando em roda, com os olhos baixos. Atrás deles, no chão da garagem, havia um corpo coberto por uma manta prateada. A disposição do corpo e o local me sugeriu suicídio. Engoli em seco e segui para as cápsulas de café que estavam me esperando no mercadinho. Quando eu voltei, tinham adiantado um carro que ocultou o corpo do olhar dos curiosos e das expressões de “que horror” que passavam pelos olhos dos transeuntes a caminho do trabalho. Perguntei para os porteiros, sempre a melhor referência de rádio peão à disposição, sobre o que tinha acontecido lá. Meus porteiros não são bons informantes, sabiam das ambulâncias, mas não do corpo. Quando Yrá, minha secretária, chegou horas mais tarde, foi enviada por mim para investigação do ocorrido. Melhor informante que os porteiros foi o cara da barraquinha de doces, que contou as poucas informações que circularam: tinha sido um suicídio de uma moça de dezenove anos, que passou o crachá de entrada na sua empresa e se atirou pela janela. Por que ela teria feito aquilo no seu trabalho? Foi a pergunta de minha detetive, digo, secretária. Ela deve morar em uma casa, respondi. E estava indiferente aos efeitos de seu ato no ambiente de trabalho. Tinha pouca chance de cair sobre outra pessoa no local escolhido. Foi premeditado, planejado e violento, o que não é muito comum em meninas adolescentes. Como o super psiquiatra da série, eu tive vontade de investigar o que tinha ocorrido. Mas a agenda estava lotada e eu tratei de enfrentar essa Doença onde eu posso fazê-lo, com aquele gosto de impotência que essa tragédia deixa na boca.
Nos Estados Unidos, as estatísticas são mais confiáveis e o Suicídio é a causa principal de morte em jovens, da adolescência até os vinte e cinco anos. No Brasil, com certeza, a causa principal nessa faixa etária é a morte por acidentes e execuções de jovens pobres. Nas classes mais favorecidas é que o Suicídio está crescendo, não sabemos se em proporções epidêmicas como nos jovens americanos.
Embora tenha uma correlação bastante clara entre Depressão, Doença Bipolar, Dependência de Álcool e Drogas e o Suicídio, cada vez mais temos evidẽncias que o Suicídio é um quadro à parte na Psiquiatria e deve ser cada vez mais estudado como entidade própria. Mesmo em centros especializados e com bom aparato de equipe e seguimento, o ato suicida continua sendo paradoxal, abrupto e difícil de prevenir. Não que isso sirva de consolo. Para ninguém.
Quando eu voltei para a rua, agora para o almoço, ainda tinha uma viatura da PM no prédio. As pessoas continuavam entrando e saindo no prédio, indiferentes à tragédia que tinha ocorrido. O carro ainda ocultava o que ocorria na garagem. Foi triste imaginar que, a 20 metros daquele escritório, estavam eu e o Fábio, que poderíamos tentar evitar aquele desfecho.

3 comentários:

  1. Mestre, muito difícil entender a situação de quem comete um suicídio. Deve ser algo aterrorizante mesmo... Só vivendo isso pra saber, mas eu não quero não. Uma pena.

    Edison

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  2. Desesperança... Cansaço... Dor... Limite... Cansaço... Cansaço... Cansaço... Fim.

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