domingo, 31 de janeiro de 2016

Em Mil Pedaços

Era uma préadolescente que veio trazida no Ambulatório Psiquiátrico improvisado na sala abafada do Centro de Saúde. Ela trazia um sintoma daqueles que eu já lera em vários tratados de Psiquiatria: a perplexidade diante do que se passava dentro de si: o olhar apavorado de quem percebe que a sua mente está desmoronando, que vai explodir em mil pedaços e ela tentava, com imenso esforço e coragem, manter os pedaços juntos, quase colados. A sua família me trouxe vários cadernos cheio de desenhos, cheios de histórias em quadrinhos que ela passava o dia inteiro desenhando. Era um surto psicótico, o início precoce de uma Esquizofrenia. Ela foi medicada, arrumei uma terapeuta amiga para atendê-la de graça, pois seus pais eram muito pobres e, durante um tempo, tudo funcionou, ela melhorou e já não ficava o dia inteiro fechada dentro de seu quarto e de sua mente, tentando colar os pedaços de sua Psique através de suas histórias e desenhos. Como acontece muitas vezes, a sua melhora foi fatal para o tratamento: os pais pararam de levá-la à Psicoterapia e depois ela abandonou, também, o seguimento comigo. Gosto de imaginar que ela acabou se salvando de uma doença cruel e devastadora, e que a terapia ensinou a menina a juntar as partes dissociadas de sua mente para voltar a organizar seus pensamentos e percepções. Mas, aqui entre nós, não acho que foi isso que aconteceu.
A Psiquiatria continua, ainda hoje, vinte anos depois, tendo a mesma postura fatalista diante desses sintomas. A posição é baseada na teoria da fragilidade genética: haveria um pool de genes que determinam a doença e, de surto em surto, a doença progride e a capacidade do paciente regride. O médico usa medicamentos combinados e em alta dose para evitar novas crises.
Ao contrário do que muita gente pensa, o advento dos medicamentos melhorou muito a qualidade de vida dos pacientes e sua capacidade de viver em sociedade. Há cerca de dois anos a imprensa noticiou a tragédia da família de um importante cineasta e documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho, que foi esfaqueado e assassinado por seu próprio filho, um rapaz também diagnosticado como esquizofrênico e que estava há muito sem tratamento. A doença e seu isolamento criou a sensação de que a sua família estava sendo perseguida e que matar os seus pais seria uma forma de protegê-los. O fato de estar sem tratamento e isolado socialmente com certeza foram decisivos para a tragédia.
Os medicamentos ajudam, e muito, mas apenas bloquear sintomas é muito pouco, nesse e nos outros transtornos psiquiátricos. Desde aquela época, nos anos noventa, que a Neurociência descobriu a Neuroplasticidade, o que mudou absolutamente tudo em Psiquiatria, menos a cabeça de alguns colegas. Como eu já descrevi em outros posts, foi comprovado o que já se sabia desde o início do século passado, que a Mente pode modificar o Cérebro. Através da compreensão de si e da capacidade de modular os pensamentos e as emoções, os sintomas melhoram e a necessidade de medicamentos diminue. Não que o establishment psiquiátrico goste sempre da ideia e menos ainda os laboratórios. A crença de que a doença é um campo minado e que qualquer movimento em falso pode causar uma explosão ainda está na base de muitos tratamentos e na cabeça de pacientes, médicos e familiares. A questão é que a Compreensão de si e do tratamento ajuda a reformatar os pedaços descolados da Mente. Os tratamentos são complementares, não excludentes.
Aquela menina estava assustada porque uma parte de seu Cérebro não estava integrada à outra parte. Nesse estado, os pensamentos como que ganhavam vida dentro de sua cabeça, dando sinais de que algo muito ruim estava para acontecer. Outra parte transformava esses pensamentos em vozes conversando entre si e falando coisas horríveis para ela. A falta de integração entre as partes também tirou dela a capacidade de integrar os pensamentos e as sensações, de modo a ficar cada vez mais assustada com a sensação de que tudo estava desmoronando dentro e fora de si. Os medicamentos desaceleraram os pensamentos e silenciaram as vozes. A psicoterapia ajudou-a a entender aqueles sintomas aterrorizantes e dimuindo o medo, diminuiu a quebra de seu Cérebro em mil pedaços. A pobreza e a falta de informação impediu a continuidade do tratamento, pelo menos naquele momento. Mas os tratamentos também são interrompidos por pessoas com recursos financeiros e informadas. As pessoas não querem "depender"de medicamentos ou terapeutas. Depender de medos ou da própria ignorância, me parece bem pior.

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