domingo, 17 de janeiro de 2016

Abraçado ao Grito

Foi no final dos anos noventa que resolvemos montar uma espécie de grupo de estudos, junguianos ou quase, um pequeno convescote em que semanalmente apresentávamos um texto de própria lavra para os outros participantes .Na minha vez eu apresentei um texto chamado: “O Nascimento da Tragédia em Nelson Rodrigues”. Apresentei um texto de um livro que é um dos dez livros da minha vida: “A Menina sem Estrela”, uma compilação de textos que Nelson Rodrigues publicou no jornal “O Correio da Manhã”, na coluna intitulada “Memórias de Nelson Rodrigues”. Nelson evocava cenas de sua vida numa espécie de associação livre, à medida que tinha seus flash backs de cenas de sua vida que dariam uma boa crônica. Não tinha uma ordem cronológica nem factual. A menina que não tinha estrela era a sua filha, que nascera provavelmente com uma doença congênita que a deixou completamente cega. Nelson descreve com detalhes gráficos a constatação fria e resignada do Oftalmologista que lhe afirmou que o seu bebê nunca iria enxergar. É um texto belíssimo, pelo distanciamento carregado de ternura. Mas não foi sobre essa crônica que eu falei. Em outro texto, Nelson fala sobre a morte de seu irmão, que ele, quase um menino, presenciou. Essa foi a cena que deu origem a meu ensaio.
Roberto Rodrigues era o mais sensível e artístico da família Rodrigues. Como seus irmãos, trabalhava no jornal de seu pai, o sempre furibundo Mario Rodrigues. Era um jornal combativo e sem papas na língua, que não hesitava em ofender e difamar seus desafetos. Numa de suas matérias. O jornal revelava que uma conhecida dama da sociedade estava se separando por motivos pouco nobres. O jornal dizia que a tal da moça seria uma adúltera, coisa muito séria no Rio de Janeiro do início do século vinte. A moça resolveu matar o editor, Mário Rodrigues, mas não o encontrou e, docemente, perguntou sobre seus filhos. Mário Filho também não estava, quem a atendeu foi Roberto, o belo e sensível irmão de vinte e poucos anos. A moça sacou uma pequena pistola e atirou no abdômen do rapaz. Nelson ouviu, na sala ao lado, seu grito de dor e susto. Viu os funcionários levando seu corpo ensanguentado pela escada. Não havia antibióticos e um tiro desses era quase com certeza fatal. Roberto morreu três dias depois. Isso viria a destroçar a família do jovem Nelson, numa cascata de desgraças. Mas a memória que ficou para ele foi do grito rasgando a redação depois do tiro. Nelson termina a história com uma frase para mim inesquecível: “Hei de morrer abraçado ao grito de meu irmão”. Quando acabei de apresentar o texto uma das participantes do grupo, uma senhora mais velha que não me conhecia muito bem ficou meio preocupada com aquele texto de apresentação. Que tipo de patologia ou morbidez fazia aquele jovem psiquiatra apreciar um texto como aquele? Seria o rapaz, no caso, eu, um deprimido, um obcecado? Não sei se a opinião dela mudou muito no decorrer dos anos, nem me importo muito, para dizer a verdade. O texto é belo, como o da descrição do diagnóstico de sua filha, não pela carga trágica nem os detalhes gráficos das tragédias, mas pela imensa, incrível carga de ternura e compaixão que Nelson Rodrigues tem pelo ser humano e sua imensa fragilidade. O mais impressionante é seu instinto amoroso. Em momento algum ele pensou em atacar a mulher que atirou em seu irmão. Ela vira um detalhe mínimo, insignificante, diante da sensação física da dor e do terror estampados nos olhos de Roberto.
O teatro e a obra de Nelson Rodrigues foi profundamente marcado por essa cena. O uivo de dor, a agonia no hospital, os gritos de seu pai que diziam ~Aquele tiro era pra mim, aquele tiro era pra mim...”, tudo isso apareceu em seus personagens delirantes, banhados por suas tragédias de subúrbio, o choro grosso dos velórios, o desespero dos amantes abandonados. Sei que parece mórbido. Mas volto ao ponto em que a tragédia mostra a compaixão pela dor do existir, não do morrer de nós, humanos. Imagino que a frase: “Hei de morrer abraçado ao grito do meu irmão” não manifesta morbidez ou talento dramático. O grito foi a marca do imenso amor do menino por seu irmão mais velho. O amor que infelizmente fica claro e imenso no exato momento da perda, no exato momento que a vida escorre por entre os dedos.

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