quarta-feira, 27 de março de 2013

Continuum

Já mencionei em outros posts, relativos à dificuldade de se criar uma visão orgânica, panorâmica, do que seja o adoecer humano, a história dos hindus cegos que tentavam descrever pela palpação, um elefante: um disse que o elefante era uma orelha gigante, outro disse que era uma rabo, uma tromba e assim por diante. Cada um seria capaz de defender seu ponto de vista (sem trocadilho) até a morte. A história é uma metáfora de nossa visão sempre parcial das coisas, a nossa cegueira é a nossa visão em túnel, ou a tentativa de explicar coisas complexas de uma maneira simplista. Sir Bernard Shaw, teatrólogo e pensador inglês, disse que para toda questão complexa há uma resposta simples... que está errada.
O último post traduziu uma visível irritação desse escriba com essas supersimplificações com ares de Ciência. A fonte de inspiração foi um Seminário em local bastante agradável, onde uma séria e bem intencionada colega desenvolvia os estudos sobre a Insônia, mal que afeta cada vez mais pessoas, ou, pelo menos, é muito mais vista e diagnosticada na medida que damos mais atenção a essa queixa. Quase a metade da população vai ter problemas com o sono em algum momento de sua vida. Essa colega em questão descreveu que a Insônia, antes vista como um sintoma, ou um complexo sintomatológico, geralmente ligada aos quadros ansiosos ou afetivos, hoje está ganhando vida própria e se emancipando, virando uma doença em si. Já temos institutos e especialistas voltados para o diagnóstico e tratamento dos Transtornos de Sono, sejam os que ocorrem durante o sono em si, sejam os que se manifestam durante o dia. Há problemas em iniciar, manter ou completar os ciclos de sono durante a noite, o que é secundário a várias doenças e causas orgânicas. Quem dorme mal vive menos, tem mais doenças crônicas como Hipertensão e Diabetes, sofre mais acidentes e prejuízo de capacidades intelectuais durante o dia. Ou seja, pela aula da moça, todos deveriam correr para uma Clínica de Sono e fazer uma Polissonografia.
A aula foi correta, bem fundamentada e baseada em evidências de pesquisa. O que me incomoda tem a ver com a história do elefante. Lá vamos ficar falando da tromba e vamos perder de vista o elefante. Não há dúvida que estudar e entender melhor o sono é lição de casa para todo psiquiatra ou neurologista que preza a sua clínica. Mas o que estamos recebendo são as vítimas de nossa civilização inflamatória. Existe um continuum, uma continuidade entre ansiedade, fadiga, depressão, aceleração, insônia, obesidade e todos os males que tentamos tratar, nem sempre com bons resultados. Na época de hipermídia, somos hiperestimulados o tempo todo a consumir, correr, buscar algo que nos falta e nem sabemos que falta. Esse é grande miolo de todas as questões, psicanalíticas, médicas, antropológicas: vivemos num mundo torturado pela sensação de falta e pela busca desesperada do alívio dessa falta. De um sapato novo a uma namorada nova, tudo, tudo virou um objeto de consumo. O consumo é rápido, pouco recompensador e aumenta a fome. A comida dos fast foods são sempre docinhas e gordurosas, para estimular justamente a satisfação rápida e a atraso da sensação de saciedade. Tudo com o objetivo de consumir-se mais, mais, mais.
A colega dizia que vivemos numa sociedade privada de sono. Não. Vivemos numa sociedade privada da sensação de saciedade. Temos uma alimentação inflamatória, um trânsito inflamatório, um sono inflamatório. O resto é consequência: os estressores geram a ansiedade, a ansiedade aumenta a ânsia de gratificação, a ânsia de gratificação gera o abuso de comida e substâncias, isso vai gerar o ganho de peso, a fadiga, a depressão, a insônia. É tudo um continuum.
O triste é que, se o leitor e a leitora forem procurar ajuda, vão receber exames para ver cada pedaço do elefante. E cada especialista vai dizer que a sua fração do elefante é a mais importante.

3 comentários:

  1. Excelente este seu artigo! Vem um pouco de encontro com o anterior.

    Vivemos uma medicina tecnicista, setorizada, voltada somente para os sintomas e não vemos o todo.
    A medicina atual também é um retrato da nossa sociedade: quer respostas rápidas, soluções rápidas e simples, muita tecnologia e pouco raciocínio. E o que é pior, totalmente setorizada e impessoal.

    Parabéns pelo artigo.
    bjos,
    Lúcia Andrade

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  2. Qta lucidez! Continuum de excessos... Sempre perspicaz, mestre.
    Bjs,
    Priscila

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  3. Socieína: sociedade-cocaína.

    D.

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