sábado, 30 de março de 2013

Jesus não tem Dentes no País dos Banguelas

Gostei tanto do filme "As Aventuras de Pi" que estou lendo o livro. No filme e no livro, o personagem principal, com evidente desagrado de seu pai, que se vê como um indiano moderno, portanto livre das ilusões e preconceitos das religiões, se converte ao Cristianismo e depois ao Islã. Pi fica apaixonado pela história e Mitologia de Jesus e a revelação do profeta Maomé. Como hundú, também tinha sido criado no Hinduísmo. Como não podia deixar de ser, Pi, agora no livro, um dia recebe a visita dos líderes de cada religião: o seu mestre hindú, um padre católico e um sacerdote da Mesquita. Óbvio que chegam à casa onde todos se orgulhavam de seu ateísmo, gerando um efeito cômico. Os três religiosos começam um debate, disputando a alma do garoto. Numa dessas falas, o hindú comenta que diacho de religião é essa, onde os homens açoitam o seu Deus e o matam na Cruz. Com Krishna, Ganesha, isso nunca aconteceria. Pi afirma, para escândalo de todos, sobretudo de seu pai, que para amar a Deus ele não precisa seguir apenas uma religião, mas tudo o que toca o seu coração. Em vez de ter ido para o Canadá, Pi poderia ter vindo ao Brasil, onde muita gente se diz católica, mas vai receber passe no Centro Espírita, joga rosas brancas para Iemanjá e ouve o sermão do pastor na TV.
O fato é que não é fácil para as pessoas entenderem a imagem de Jesus, que se torna o Cristo depois de sua morte na cruz. O próprio Jesus demorou a entender, e clamou no Gethsemani se aquele cálice poderia ser afastado de Si. Há uma cena em outro filme que eu adoro, este mais antigo, que é "A Última Tentação de Cristo". Neste filme, Judas não é o vilão da história e não merece ser malhado em Sábado de Aleluia. Ele é um amigo e um braço forte ao lado de Jesus. Numa cena ele se impacienta com Jesus e pede para ele finalmente se decidir, uma vez que no começo fala que veio trazer o Amor, depois a Espada e agora vem falar que tinha que morrer, que história é essa? Jesus observa que Deus não conta tudo para ele de uma vez, mas vai Se revelando na medida que Jesus pode entendê-lo. E para Judas ficaria o pior papel: teria que trair o Seu amigo.
Esse blog já está chegando ao seu terceiro ano, e nos dois anteriores eu falei sobre o simbolismo da morte do Filho do Homem na cruz. Prometi não fazê-lo nessa Páscoa, mas acho que não vou cumprí-lo. Gosto da cena do livro, pois não é a primeira vez que ouço essa incompreensão sobre o Mistério e, ainda mais, sobre a própria imagem e simbolismo de Jesus agonizando na Cruz. Alguns séculos antes, um príncipe hindú, Sidarta, descobriu que a natureza essencial de nossa experiência neste mundo é o sofrimento. Jesus toma o sofrimento para Si, para transformá-lo. Muitos psicanalistas poderiam ver na imagem do homem torturado na cruz a tendência cristã de glorificação da dor. E olha que não falta quem faça do sofrimento a sua coroa de glórias, sendo o sofredor cristão, ou hindú, ou budista ou islâmico. Mas o Mistério é o de viver essa dor que está no âmago de nossa experiência encarnada e renascer de uma forma que ultrapassa toda a Dor.
Estava ouvindo uma paciente que está terminando a sua Via Crucis moderna, representada por um longo tratamento de quimioterapia, provavelmente seguido pela radioterapia. Após toda essa viagem, sofrida como a jornada de Pi, ela teve um sonho, onde nascia de sua irmã mais velha, hoje uma senhora bem idosa, uma criança maravilhosa e estranhamente perfeita para um parto tão inusitado. Ela fica maravilhada com a beleza do bebê, mas percebe que ele já tem dentes, e um de seus dentes tem uma cárie muito feia, que vai precisar de cuidados. Obviamente que o bebê representa o nascimento de uma Criança Divina, como as suas células que renascerão renovadas depois do tratamento. Naquela beleza, ainda há uma cárie a ser cuidada, ou seja, ainda estará lá a fragilidade que lhe causa muito medo. A cárie representa a Morte, a mortalidade que está posta o tempo todo na Jornada Noturna do tratamento. A tal cárie vai mantê-la atenta, todo o tempo, à própria fragilidade e à necessidade de manter a vida através do Cuidado pleno, atento. Estranhamente, é dessa fragilidade que surge o Mistério. A imagem da Crucificação, seguida da Descida ao Reino dos Mortos e a Ressurreição são vividos todos os dias nos corredores dos hospitais, nas máquinas de Hemodiálise ou nas mesas de Cirurgia. Por que não dizer, também nas lágrimas dos divãs. No filme e no livro, Pi vai enfrentar a Dor, a Desesperança e a Morte. Como um bom cristão. E hindú. E islamita.

Um comentário:

  1. Muito lindo seu texto!

    A dor existe e temos que passar por ela. Até mesmo Ele teve a dor. A Páscoa (passagem) nos faz renascer mesmo na dor e no sofrimento. Estes não estão nas nossas vidas como castigo ou para pagar alguma coisa. Simplesmente fazem parte da vida e da natureza. Ele nos conforta e nos faz renascer.
    bjos e Boa Páscoa!
    Lúcia

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