quarta-feira, 6 de março de 2013

Função Transcendente

Há alguns anos eu ganhei de um paciente um livro “Em Busca do Sentido” do psiquiatra Victor Franckel. Não costumo aceitar lições de casa como leituras de livro, filmes ou letras de música. Mas acabei lendo esse livro e pretendo revisitá-lo um dia desses. Para quem não conhece, Victor foi um médico psiquiatra judeu capturado e jogado em campos de concentração desde o início da guerra. Entre os seus pertences que levou para os campos de morte havia um artigo que tinha a intenção de publicar quando aquele período se findasse. Ele não imaginava o que o esperava.
Victor sobreviveu até o final da guerra, quando os campos de concentração foram libertados pelos russos e pelas tropas aliadas. Escapou milagrosamente, inclusive, da “Solução Final”, quando os alemães, já percebendo que seriam derrotados, aceleraram o processo de extermínio dos prisioneiros judeus. O fato de ser médico ajudou muito, pois cuidava das enfermarias lotadas de prisioneiros. Mas o que realmente contou para a incrível resistência de Victor Franckel foi a sua atitude de se manter lúcido, tentando entender o comportamento dos soldados e oficiais alemães, que depois de matar, surrar e humilhar os prisioneiros judeus voltavam para suas casas e amavam seus filhos, educando-os para o bem. Estudava também os colaboracionistas, os prisioneiros que se identificavam com o perseguidor e prendiam, deduravam, traíam seu próprio povo. O psiquiatra Victor Franckel pode ver o melhor e o pior da natureza humana dentro dos campos de extermínio, com um olhar desesperadoramente imparcial. Conseguia ver bondade e maldade nos opressores e nos oprimidos, daí a necessidade de encontrar algum sentido em tudo aquilo. É um livro incrivelmente triste e bonito. Mas como colega desse homem me dava um pouco de coceira a sua necessidade absoluta de uma análise fria e distanciada do que estava ocorrendo, o que provavelmente o salvou da insanidade, mas o fez perder algumas cenas e experiências realmente impressionantes. Numa delas, Victor conversava com uma moça, em estado avançado de magreza e consumida pela desnutrição e infecções. Essa moça estava na véspera de sua morte e confessou para o médico que era muito grata aos alemães pelo que ela vivera naquele lugar. Ele quase caiu da cadeira. Como assim? Ela respondeu que era uma moça mimada, filha de um banqueiro, que vivia uma vida de futilidade e gastança, sem nenhum contato real com a vida. Naqueles anos, ela pôde conhecer a própria natureza, ajudar as pessoas e a si própria e lutar, todo dia, pelo próximo dia. Se não tivesse sido colocada naquele lugar, provavelmente viveria uma vida boba e sem sentido. Não me lembro da reação dele a esse depoimento, lembro só que a distância fria do cientista não foi suficiente para entender aquela fala em sua profundidade.
Outro psiquiatra de língua alemã, Carl Jung, nunca leu nada de Victor Franckel ou se leu, não comentou. Jung não era judeu, nem antissemita, como é acusado até hoje. A perspectiva que ele enxergou a guerra foi de uma espécie de possessão que tomou conta dos alemães, uma verdadeira psicose coletiva, que já havia aparecido em seus sonhos antes da guerra acontecer. Tenho certeza que ele faria uma boa leitura do que falava aquela moça, na véspera de sua morte. Ela viveu na própria pele a Função Transcendente, um salto que a nossa consciência em momentos extremos de tensão. Muita gente pode lembrar de momentos da própria vida em que uma experiência difícil, ou emocionalmente intensa, permitiu à Consciência uma espécie de salto quântico, permitindo uma visão mais ampla e sábia, da vida e de seus ciclos. O que essa moça descreveu em seu leito de morte foi exatamente esse incrível salto de amor e sabedoria que lhe permitiu uma visão ampla e profunda, do significado e mais ainda, do sentido profundo daquele sofrimento em sua vida. Isso não é algo que se possa obter com técnicas ou racionalizações materialistas, nem com o olhar frio do cientista. É um salto que se sente, não que se possa programar. Por isso que uma psicoterapia que se preza não cabe no Método Científico. Os saltos de consciência se dão de forma descontínua e inesperada, diante da escuta atenta do terapeuta. A escuta e o olhar, que permite ou cria o campo psíquico necessário para o salto. Sobretudo, a escuta e o olhar amoroso.

Um comentário:

  1. Olá Spinelli,

    Que coincidência...comecei a ler este livro recentemente e você faz um blog sobre ele.
    Muito curioso.

    bjos,
    Lucia

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