domingo, 24 de março de 2013

Eu e a Medicina Baseada em Evidências

Ontem recebi um e-mail de uma amiga que lê esse blog. Queixava-se do atendimento que seu neto recebeu diante do diagnóstico de uma suposta Hipertrofia Adrenal, Congênita. Vagaram por consultórios de médicos de grife, ouvindo os prognósticos mais aterrorizantes e os exames mais meticulosos. Matou a charada um velho pediatra que falou que as alterações dos exames eram devidos a transferência de hormônios para a o bebê de sua mãe, e que iriam se normalizar com o tempo. O bebê não tinha nada.
A Medicina Baseada em Evidências é a nova e grave doença que acomete a cabeça já não muito pensante dos médicos. A ideia inicial não é tão ruim: em vez de sair fazendo diagnósticos com base em achismos e umbigadas de velhos clínicos parecidos com pajés, a Medicina Baseada em Evidências busca, como o nome diz, amparar qualquer diagnóstico e conduta em exames, sintomas e achados que possam ser demonstrados empiricamente. Esse palavrão quer dizer que o diagnóstico deve se basear em sinais palpáveis, sobretudo laboratoriais ou em exames de imagem, coletados na prática, na busca científica de dados. Podemos até morrer, desde que os exames atestem que isso está acontecendo. Somos detetives colhendo provas que respaldem nossas teses e condutas. Isso deve criar um médico mais cuidadoso em fazer seus diagnósticos e previsões do que pode ser um futuro melhor ou pior para o paciente. Ou seja, nada contra. Antes de se fazer as inferências, é bom que os fatos estejam do seu lado. Qual é o problema, então?
Há alguns meses eu encaminhei uma paciente para um colega, com um quadro de alteração motora. O diagnóstico estava evidente para um psiquiatra. A paciente passou por uma maratona de exames exaustivos, invasivos e assustadores para que a hipótese inicial fosse confirmada. Essa é uma Medicina caríssima, meticulosa, que procura a máxima acurácia antes de tomar alguma conduta. O que acontece, pelo o que posso notar, é que esse quadro obsessivo de coleta de dados leva a uma séria distorção de raciocínio. Se você ouve um tropel ao longe, estando aqui no Brasil, você pode imaginar que seja um tropel de cavalos. Se estiver no Nordeste, é justo imaginar que seja um tropel de jegues. Mas imagine que a cavalgada seja de zebras ou, no limite, de camelos. Pode ter ocorrido uma fuga de um circo, ou de um zoológico e você está ouvindo a bicharada correndo ao longe. Você pode buscar a verdade, saindo de casa, com cuidado para não ser atropelado, e verificar que está passando um grupo de cavalos, ou de jegues, batendo os cascos contra o asfalto. Pode igualmente fazer uma varredura direto do satélite para ver se há um tropel de zebras na região. Os procedimentos podem trazer os mesmos resultados, embora o rastreamento via satélite seja mais completo e inacreditavelmente mais caro. A grande questão é: ao ouvir o tropel nós vamos pensar no que? E quanto vamos gastar para descartar que o tropel é de zebras?
Estamos tentando eliminar os achismos, estamos erradicando a vida inteligente. O diagnóstico é dedutivo, se baseia em inferências e isso implica em riscos. Se o médico não se arrisca, inclusive ao risco de estar equivocado quanto ao seu diagnóstico, o que ele deve fazer o tempo todo, a minha paciente pode passar meses com seu problema recrudescendo sem receber nenhum medicamento, pois isso pode atrapalhar a coleta de evidências. Na próxima, vou encaminhá-la para um daqueles clinicões, que batem o olho no paciente quando passa pela porta e já se diz: é isso. E, quase sempre, está certo. E não precisa de varredura via satélite quando ouve um tropel.

3 comentários:

  1. Spinelli,

    Maravilhoso o seu artigo!
    Deveria ser impresso e distribuído nos hospitais.
    bjos,
    Lúcia Andrade

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  2. É meu amigo, saudades da boa e velha Propedêutica... Tanto da Clínica, qto da etimologia da palavra...
    abs
    Fabio

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  3. Adorei o tropel de zebras....

    D.

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