domingo, 22 de setembro de 2013

O Erro Fundamental

Um dos últimos filmes do mestre japonês Akira Kurosawa foi produzido e financiado por alguns admiradores americanos, Steven Spielberg dentre eles. “Sonhos” de Kurosawa é um dos maiores filmes que eu já vi e consta, como o nome já sugere, de sonhos que o mestre teve e transformou em filmes, em episódios. No primeiro, um Kurosawa menino é alertado por sua mãe que não pode passear no bosque, onde a Grande Raposa passeia com seu séquito e não pode ser vista por olhos humanos. O menino, claro, não obedece a ordem, vai até os bosques e presencia, maravilhado, o desfile da Grande Raposa e sua comitiva. O que ele não esperava é que o tal desfile iria parar, quando os seres mágicos percebem o olhar do intruso. O menino volta correndo para casa, mas não pode mais entrar. Como ele cometeu aquele erro maior, estava agora sem um lar. A moça aponta para ele um arco-íris. No final do mesmo há um pote de ouro. Ele só poderá voltar para casa de posse de seu pote de ouro. A criança chora. Fim do primeiro filme.
Não acho que “Sonhos” tenha sido um sucesso comercial. Provavelmente, mal se pagou. Ser fiel à estrutura de um sonho não é algo muito filmável, mas o homem, já nos últimos anos de sua vida, não estava mais preocupado nem com vaias nem aplausos. Esse sonho, particularmente, fala de um tema mitológico recorrente, que é o “Pecado Mortal”, ou o “Erro Fundamental”. O tema que se repete é de um herói, ou uma heroína, muito senhores de sua capacidade que, em algum momento, comete um ato imprudente, por orgulho, por um Ego inflado, por tentar se equiparar ou ludibriar os deuses. Adão e Eva caíram na conversa da serpente para tomar para si o Fruto da Árvore do Conhecimento. Como o garoto do filme de Kurosawa, eles são impelidos pela curiosidade e pela fantasia se serem mais espertos que os seres divinos, que prontamente percebem a tentativa de logro. Adão e Eva saem do Paraíso da Inconsciência e entram no mundo da Realidade, onde existem o Bem e o Mal, a Vida e a Morte. Javé indica o próximo fruto proibido, que é a Árvore da Vida. Procuramos por ela desde então.
Na Odisséia, Ulisses começa a sua volta para a sua Ítaca, depois de uma magnífica vitória da Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de “presentear” (dando origem à expressão “presente de grego”) os adversários com um cavalo de madeira gigante, onde ele e outros guerreiros ficaram escondidos para, durante a noite, abrir os portais que fechavam as fortalezas troianas. Os gregos venceram uma guerra de dez anos, voltando ricos para casa. Ulisses estava bonito na foto. Estava indo para casa com ouro, com um exército vitorioso e muita história para contar. Até que alguém teve a brilhante ideia de fazer um último saque, na ilha de Ísmaro. Lá foram os comandados de Ulisses saquear os bens, levar as mulheres, eliminando os homens. Uma prática comum na época e na vida corporativa de nosso tempo. Poderiam ter ido embora com mais este pé de meia. Mas não. Quiseram fazer uma última festinha. Foram atacados no meio da festa pelos habitantes da ilha vizinha, que não eram bestas e já sabiam que a melhor defesa é o ataque. Voltando para o mar, enfrentaram uma tempestade, as velas se rasgaram e eles se perderam em alto mar. Um pequeno erro, gerado pelo orgulho e inflação de Ego, que custou a Ulisses uma jornada para dentro do Desconhecido.
Todo dia fazemos parte dessas jornadas, que começam com um evento fortuito, um pequeno erro, e muda a direção da vida de uma pessoa. A sua vida é arremessada para o alto mar e a pessoa vai ter que procurar, dolorosamente, pela trilha perdida. Uma briga com o chefe, uma puladinha de cerca, um investimento temerário e as coisas desmoronam como um castelo de cartas, para nós humanos, ou para Eike Batista. Um pequeno peteleco, e tudo desmorona.
Estamos acostumados pelas escolas de catecismo a lamentar pelo Erro Fundamental de Adão e Eva, que reproduzimos em alguns momentos de nossa vida.Bobagem. O erro arquetípico nos coloca em busca do arco íris e do pote de ouro. Quem não procura por eles, fica na margem da própria vida. Como quem vive sentado encima do medo de errar.

Um comentário:

  1. maravilhoso...

    e a vida talvez se resuma em encontrar esse equilíbrio entre a coragem e o medo....

    d.

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