domingo, 1 de setembro de 2013

O Mito da Jornada e a Jornada do Mito

Na prática clínica, como na vida, damos mais atenção para as más do que as boas notícias. Naquela noite, no consultório do Morumbi, recebi a má notícia da recidiva de um Câncer de uma paciente querida. Ela me pediu uma palavra, e essa é uma situação difícil, procurar palavras exatamente onde as palavras são mais inúteis, ou traiçoeiras. Felizmente este psiquiatra calejado escapou dos clichês e dos lugares comuns. Não que isso faça muita diferença. Numa situação dessas a paciente só precisa desesperadamente saber que não está só naquela situação, que a mesma não é sem saída e que, vamos lá, vamos enfrentar, um dia de cada vez. Mas o que me ocorreu naquele momento é que a metáfora perfeita sobre o que viria pela frente é a da Jornada. O primeiro ciclo de tratamento, que incluiu cirurgia extensa e quimioterapias, havia sido atravessado há cinco anos. Agora teria início uma nova jornada, inesperada, perigosa e sem um roteiro claro ou previsível.
Soube depois que a nossa conversa era ouvida no viva voz, com toda família envolta do telefone. No pressure. Fiquei feliz de não ter minimizado o problema, nem muito menos ter mencionado a necessidade de motivação nem de pensamento positivo, nem essas bobagens que se falam, com a melhor das boas intenções, para as pessoas que estão aterrorizadas nesta situação. O melhor é se falar o básico, mas com uma metáfora que ajude na compreensão do que está acontecendo e do que está por vir. Essa é uma das funções do Mito, além da função de transformar a vida numa narrativa, como postado ontem nesse blog.
O Mito fornece uma espécie de imagem em 3 D do que está acontecendo, e que a pessoa amedrontada pode se espelhar em muitas outras pessoas que passaram pela sensação do medo diante da floresta escura ou do caminho incerto. Talvez a mais incrível jornada mitológica tenha sido a de Ulisses, ou Odisseu. A sua jornada começa em sua maior vitória, na Guerra de Tróia. Foi dele a ideia de construir o Cavalo de Tróia, que, pasmem, não é um artefato para inserir algum vírus no seu computador. Ulisses tinha sido decisivo para os gregos ganharem a guerra, tinha ficado rico com a vitória e iria voltar para a sua pequena Ítaca nos braços da torcida. Mas não foi bem isso que aconteceu. Ulisses passou duas décadas longe de casa, até conseguir voltar para os braços de sua amada e do filho que deixou bebê dentro de casa. Muitos acreditaram que ele estava morto, até a sua mãe morreu de desgosto na certeza que seu filho estava completamente perdido. Só duas pessoas acreditavam que a volta do guerreiro para a sua terra seria possível: o próprio Ulisses e sua esposa, Penélope. Justiça seja feita, o cachorro de Ulisses, só suspirou e morreu quando finalmente ouviu a voz de seu dono, vinte anos depois.
Começar um projeto, ou um tratamento, pode ser uma longa e acidentada jornada. Algumas vezes, uma Odisséia. Por isso é bom conhecer e lembrar do Mito, que pode servir como uma lanterna para os afogados.

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