sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Tempo das Coisas

Posso não ser o melhor terapeuta, mas sou com certeza um bom contador de histórias. Frequentemente as situações que aparecem na prática clínica já apareceram antes na Mitologia ou no Cinema, que é a nossa fonte moderna de novas mitologias ou de mitos antigos requentados. Tenho falado nos últimos posts num Mito que me é particularmente caro, o da Jornada Arquetípica, particularmente a Jornada de Ulisses na “Odisséia”.
Lamento estragar o final da história, mas Ulisses se ferra o tempo todo em sua Jornada de volta a Ítaca. Depois de ganhar a Guerra de Tróia ele tinha tudo para voltar nos braços da torcida, mas acabou arrumando uma treta com Poseidon, deus dos Mares. Quando o seu único meio de transporte é por via aquática, não é boa idéia ser um desafeto do cara. Ulisses demorou vinte anos para voltar para casa, entre o período da Guerra e a sua Odisséia para voltar para a Ilha onde era Rei e tinha mulher e filho esperando por ele. Depois de várias escolhas desastradas e muitas, muitas perdas, eis que Ulisses perde tudo: seus amigos, o caminho de casa, seu exército, sua fragata. Ele vai dar, semimorto e náufrago, em uma bela ilha. Lá, ele é resgatado de seu sofrimento por mulheres belíssimas e pensa que está nos Campos Elíseos, não o bairro de São Paulo, mas o lugar dos bem aventurados, o Paraíso dos justos e dos guerreiros. Mas não era o caso. Ulisses não estava morto, mas tinha chegado a um lugar maravilhoso, que é a Ilha de Calipso, deusa maravilhosa, que logo se tomou de amores pelo náufrago. No filme “As Aventuras de PI”, um bom exemplo de uma Jornada Arquetípica, o náufrago Pi finalmente, (depois de experimentar as perdas e o sofrimento de fazer inveja ao Odisseu) decide se entregar para a própria morte. Pi se entrega para a fome e a cegueira e encomenda a sua alma ao seu Deus. Ele se despede de seu companheiro de viagem, o tigre Richard Parker. Quando acorda, encontra uma ilha toda coberta por uma planta doce, peculiar e por um monte de suricatos, que vão alimentar o náufrago e o tigre. Parece uma versão bastante piorada da Ilha de Calipso. Mas voltando à Odisséia: apesar de toda folga, todo o descanso e a vista repleta de mulheres maravilhosas, Ulisses não tarda em perceber que a sua jornada não chegou ao fim. Ele está em um lugar seguro, agradável, com uma belíssima vista de mulheres que são verdadeiras deusas. Ainda assim, ele sente saudades de casa. Tem a cara de pau de achar que vai voltar para casa depois de vinte anos e vai encontrar a esposa e o filho cheios de amor por ele. O incrível narcisismo dos homens.
Ao final do dia, Ulisses vai até a praia e fica olhando para os céus, procurando nas estrelas o caminho da bela Ítaca. Ele sabe que se reclamar com a bela e possessiva Calipso não vai sobreviver para contar a história. Um home que recebe a graça de se deitar com uma deusa não pode querer entrar numa de discutir a relação. Ulisses está num beco sem saída: o lugar é legal, a namorada é uma deusa mas o seu lugar não é ali. Como resolver o impasse?
Athena, deusa que esteve sempre ao lado dos gregos e de Ulisses durante a Guerra de Tróia, finalmente é tocada no seu coração de olímpica para interceder por Ulisses. Ela chega em seu pai querido, nada menos que o superpoderoso Zeus e faz chegar o recado que Ulisses estava pronto. O tempo tinha se cumprido. Zeus manda o seu filho, Hermes, para ele costurar um acordo com seu irmão Poseidon, para Ulisses finalmente poder voltar para casa. Depois de sete anos na praia, esperando, os deuses finalmente conseguiram ouví-lo e ajudá-lo.
Essa parte do Mito me lembra do conselho de Jesus “Peças e recebereis, bata e a porta se abrirá”. Não vem com um manual de instruções de quanto tempo vamos ter que pedir, nem o quanto vamos bater até a porta se abrir. No caso de Ulisses, foram sete anos de súplicas até a deusa resolver se mexer. Em alguns casos, pode demorar mais.
Gosto de pensar que esse mito como um todo, mas, particularmente nesse trecho, quando falamos em uma jornada estamos falando de uma longa travessia. Nesses tempos em que queremos tudo para ontem e à distância de um toque no I-Pad, o tempo de Ulisses na Ilha de Calipso representa, para mim, o Tempo das Coisas. O tempo entre desejar algo e a jornada que temos que fazer para encontrar o caminho. Sempre que, como Ulisses, eu me vejo perdido no meio do caminho, é só parar para descansar e olhar as estrelas. Elas mostrar-me-ão a direção de casa.

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