Tem um trecho de uma carta de Jung que eu gosto muito, em que ele fala sobre ser possuído pelo demônio do Desejo. Eu fico sempre resistente em fazer a tradução do Desejo como algo doentio ou gerador de sofrimento. Não vivemos sem o desejo, nem que seja o desejo de superar os desejos. A questão não é deixar de desejar, mas de cuidar do Desejo Fixado, da energia psíquica drenada e estagnada pela obsessão desejosa. Vou transcrever um trecho dessa carta: “Quando você se abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno, você dá um objeto à sua Anima; e esse objeto se volta para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio...”. Do que ele está falando? De tudo. Vou explicar.
Somos bombardeados o tempo todo pela subjetividade inflamatória do “Vai,vai,vai, vai”. Viva muito, coma muito, corra muito, faça tudo em intensidade o tempo todo. Corre, corre, corre. Nossa pós modernidade foi anunciada pelo coelho de Alice: “É tarde, é tarde, é muito tarde”. Estamos sempre em déficit com o tempo, sempre um passo atrás de sua marcha. Pelo menos, é essa a nossa sensação. O estímulo é de desejar mais, mais rápido. Correndo atrás do tempo, estamos sempre perdendo algo. E querendo mais. Essa é a mágica. O Desejo procura algo onde possa se fixar. Por exemplo, falamos muito nesse blog sobre obsessões amorosas. Bom exemplo de desejo fixado. Começa com a percepção da falta: preciso de alguém. Como o coelho de Alice, preciso encontrar alguém rápido, senão vou ficar sem ninguém, como no jogo da Dança das Cadeiras. Aparece um candidato, ou candidata. Nesse ponto, vai começar a possessão pelo diabo da Anima ou do Animus: tudo passa a girar em torno do ser desejado. Jung não tinha ideia, quando escreveu esse texto, do poder fixador de loucuras das redes sociais. Posta-se um comentário, ou uma foto na rede social. O objeto do desejo não clica uma mísera curtida. Por que não curtiu? Uma broaca curtiu uma foto do quase amado. Quem é essa? O estado de possessão vai num crescendo que, quase invariavelmente, vai terminar em lágrimas a sofrimento. A fixação termina, lógico, com o objeto do desejo fugindo apavorado. Daí passamos para a fase seguinte, que é a perseguição. Agora vou perseguir o ser amado e obrigá-lo a me amar. No caso de homens, pode terminar num “não vai ser minha não vai ser de ninguém”.
O trecho mais difícil dessa citação é a frase final: “ O objeto se volta para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio...”. Esse pedaço é realmente o mais difícil de se entender, nessa época de literalidades: não adianta virar o mundo atrás do ser amado, sacrificar tudo em função de seus planos e desejo, se o mesmo não for vivido internamente.
Há uma cena em um filme sobre a infância do Dalai Lama, em que ele negocia com os invasores chineses, e o militar tenta tranquilizá-lo, a China vai salvar os tibetanos, trazer o desenvolvimento para aqueles simplórios. O jovem líder responde que nem ele nem ninguém pode salvá-lo. O único que pode salvá-lo é ele próprio.
Quando colocamos a vida nas mãos do Outro, fazemos exatamente o contrário do que o jovem Kundum tentou ensinar ao chinês: a salvação é uma tarefa pessoal, não pode ser terceirizada. Tentar encostar em alguém, ou se fixar num salvador, é o caminho do Inferno.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Mestre, muito bom como sempre !
ResponderExcluirAbraços.
Edison
Eu queria querer-te amar o amor
ResponderExcluirConstruir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Inspirador, mestre! Vamos em frente...
ResponderExcluirBjs, Priscila