domingo, 9 de fevereiro de 2014

Bruta Flor do Querer

Tem um trecho de uma carta de Jung que eu gosto muito, em que ele fala sobre ser possuído pelo demônio do Desejo. Eu fico sempre resistente em fazer a tradução do Desejo como algo doentio ou gerador de sofrimento. Não vivemos sem o desejo, nem que seja o desejo de superar os desejos. A questão não é deixar de desejar, mas de cuidar do Desejo Fixado, da energia psíquica drenada e estagnada pela obsessão desejosa. Vou transcrever um trecho dessa carta: “Quando você se abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno, você dá um objeto à sua Anima; e esse objeto se volta para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio...”. Do que ele está falando? De tudo. Vou explicar.
Somos bombardeados o tempo todo pela subjetividade inflamatória do “Vai,vai,vai, vai”. Viva muito, coma muito, corra muito, faça tudo em intensidade o tempo todo. Corre, corre, corre. Nossa pós modernidade foi anunciada pelo coelho de Alice: “É tarde, é tarde, é muito tarde”. Estamos sempre em déficit com o tempo, sempre um passo atrás de sua marcha. Pelo menos, é essa a nossa sensação. O estímulo é de desejar mais, mais rápido. Correndo atrás do tempo, estamos sempre perdendo algo. E querendo mais. Essa é a mágica. O Desejo procura algo onde possa se fixar. Por exemplo, falamos muito nesse blog sobre obsessões amorosas. Bom exemplo de desejo fixado. Começa com a percepção da falta: preciso de alguém. Como o coelho de Alice, preciso encontrar alguém rápido, senão vou ficar sem ninguém, como no jogo da Dança das Cadeiras. Aparece um candidato, ou candidata. Nesse ponto, vai começar a possessão pelo diabo da Anima ou do Animus: tudo passa a girar em torno do ser desejado. Jung não tinha ideia, quando escreveu esse texto, do poder fixador de loucuras das redes sociais. Posta-se um comentário, ou uma foto na rede social. O objeto do desejo não clica uma mísera curtida. Por que não curtiu? Uma broaca curtiu uma foto do quase amado. Quem é essa? O estado de possessão vai num crescendo que, quase invariavelmente, vai terminar em lágrimas a sofrimento. A fixação termina, lógico, com o objeto do desejo fugindo apavorado. Daí passamos para a fase seguinte, que é a perseguição. Agora vou perseguir o ser amado e obrigá-lo a me amar. No caso de homens, pode terminar num “não vai ser minha não vai ser de ninguém”.
O trecho mais difícil dessa citação é a frase final: “ O objeto se volta para o mundo, em vez de ficar no interior, seu lugar próprio...”. Esse pedaço é realmente o mais difícil de se entender, nessa época de literalidades: não adianta virar o mundo atrás do ser amado, sacrificar tudo em função de seus planos e desejo, se o mesmo não for vivido internamente.
Há uma cena em um filme sobre a infância do Dalai Lama, em que ele negocia com os invasores chineses, e o militar tenta tranquilizá-lo, a China vai salvar os tibetanos, trazer o desenvolvimento para aqueles simplórios. O jovem líder responde que nem ele nem ninguém pode salvá-lo. O único que pode salvá-lo é ele próprio.
Quando colocamos a vida nas mãos do Outro, fazemos exatamente o contrário do que o jovem Kundum tentou ensinar ao chinês: a salvação é uma tarefa pessoal, não pode ser terceirizada. Tentar encostar em alguém, ou se fixar num salvador, é o caminho do Inferno.

3 comentários:

  1. Mestre, muito bom como sempre !

    Abraços.

    Edison

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  2. Eu queria querer-te amar o amor
    Construir-nos dulcíssima prisão
    Encontrar a mais justa adequação
    Tudo métrica e rima e nunca dor
    Mas a vida é real e é de viés
    E vê só que cilada o amor me armou
    Eu te quero (e não queres) como sou
    Não te quero (e não queres) como és

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  3. Inspirador, mestre! Vamos em frente...

    Bjs, Priscila

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