sábado, 15 de fevereiro de 2014

Fantasma na Máquina

Estava num semáforo em São Paulo, esperando o sinal verde e observando o verdadeiro circo que se desenrola naqueles curtos minutos: malabaristas, cuspidores de fogo, ceguinhos com um guia de mão estendida, uma concorrência cada vez maior pela indústria da esmola, que movimenta alguns milhões nas esquinas. Lá pelas tantas, me aparece um rapaz que mancava na perna esquerda e tinha paralisada a sua mão direita. Perguntei o que tinha causado esse mal, ele respondeu que teve um AVC. Neste caso, acho melhor você estudar melhor que a sua lesão não tem correlação anatômica. Deixa as minhas moedinhas em paz.
A Histeria era uma “Doença dos Nervos” que desafiava a Medicina no século dezenove, justamente pela falta de correlação entre sintomas e base anatômica. Seria o fantasma na máquina que causava aquelas paralisias, bloqueios e tremedeiras em pessoas normais, sem nenhuma alteração ao exame clínico?
O neurologista austríaco Sigmund Freud iniciou uma estudo pioneiro, hipnotizando essas pacientes. Um pequeno milagre ocorria: as paralíticas voltavam a andar, as mudas voltavam a falar, medos irracionais e paralisantes desapareciam num passe de mágica. Freud descobriu que as pacientes sob hipnose recuperavam cenas traumáticas, muitas vezes esquecidas, recuperadas com grande emoção. A rememoração do trauma permitia muitas vezes o desaparecimento imediato dos sintomas “neurológicos” dos pacientes. Nascia uma das teorias mais impressionantes da história humana: a Teoria do Inconsciente. Memórias inconscientes poderiam ter efeito tóxico sobre a nossa mente, provocando sintomas inexplicáveis.
Nesta época em que a Psiquiatria arrota tanta Biologia Molecular e Neurociência, as teorias freudianas parecem peça de museu. Nos congressos não se faz quase que nenhuma alusão a esse conhecimento e o Inconsciente virou um palavrão. Outro dia recebi uma paciente que estava sendo acompanhada por um colega que considero sério e bom médico. A medicação utilizada estava em dose adequada e a resposta clínica, modesta. Os manuais de boas práticas diriam que a medicação não estaria regulando adequadamente a neurotransmissão. A recomendação óbvia seria aumentar a dose de tudo. Por que aquela medicação, que parecia adequada, não produzia resposta adequada? A conversa deixou o campo dos sintomas e passeou por outra busca: o que estava provocando aquele cansaço, a sensação de acovardamento, a falta de energia vital? Não foi preciso nenhuma hipnose para recuperar as mágoas e as angústias que ela não conseguia elaborar. Sobretudo, a raiva que ela tinha muita dificuldade em elaborar e manifestar. Após a longa conversa da primeira consulta, o semblante se abriu, a voz ficou mais firme e o entendimento dos sintomas e de onde eles vinham ajudou a equilibrar a economia de seus sintomas e, espero, de sua energia.
Somos mais do que desequilíbrio de neurotransmissores ou de genes defeituosos. A histeria de nosso tempo não se manifesta mais com falsas paralisias ou cegueiras (elas continuam existindo, mas são mais raras). As tensões, os medos, as angústias, continuam se manifestando de maneiras mais estranhas. Mais de cem anos depois da descoberta de Freud, o Inconsciente ainda está repleto de tensões, de medos e de manifestações clínicas. Pode fingir que não está lá, que o Inconsciente continua se manifestando. O tempo todo.

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