domingo, 23 de março de 2014

A Apanhadora de Histórias

Uma característica de vários filmes que disputaram o Oscar, seja como melhor filme ou nas outras categorias, foi a ênfase em histórias “baseadas em fatos reais”. Obviamente romanceadas e mitificadas, as histórias retiradas de personagens reais, muitas vezes que aparecem nas fotos e cenas aos lados dos créditos finais, parecem ser uma tendência da indústria de entretenimento. Eu diria que nos rendemos definitivamente a um mundo Reality Show, em que espiamos os dramas dos outros em várias telas, com mais ou menos veracidade. Vi um filme adorável hoje, o melhor da safra do Oscar, na minha nem sempre modesta opinião: “Philomena”, com a diva Judi Dench fazendo um o papel de uma senhora que resolve, depois de cinquenta anos de silêncio, sair em busca de um filho dado contra a sua vontade para adoção. Não vou entrar em detalhes nem esbravejar por não terem dado o Oscar para Judi Dench. No ritmo que as coisas vão nesse mundo, a entrega do Oscar parece uma coisa que aconteceu há meses. A parte engraçada é um comentário ácido do jornalista que descobre a história e a transforma em uma Jornada Arquetípica: esse jornalismo Reality Show é feito para gente apática e sem conteúdo ficar vendo histórias para gente apática e sem conteúdo. Felizmente para nós, o jornalista estava desempregado e em desgraça em seu meio e foi meio que obrigado a embarcar e se encantar com a saga de Philomena, o que deu um belo livro e um delicioso filme. Mas não era sobre isso que eu queria comentar.
O mundo consome em doses maciças essa sobrecarga de literalidade. Histórias reais, câmeras escondidas, pegadinhas, teste de fidelidade, há uma demanda impressionante de gente disposta a espiar a vida dos outros pela fechadura. O efeito colateral mais visível e imediato é a perda, também progressiva, de nossa capacidade de simbolização. Nelson Rodrigues dizia, no século passado, que o vídeo tape, o replay era burro, pois tirava a nossa capacidade de contar a história de uma partida de futebol em termos míticos. O Brasil perdeu uma Copa do Mundo onde tinha o melhor time, derrotado diante de duzentas mil pessoas emudecidas. O lateral esquerdo do Brasil, chamado Bigode, teve durante o jogo um atrito com o adversário e supostamente levou uma bofetada. Essa história, contada por algumas testemunhas ou pseudotestemunhas oculares, virou o símbolo máximo de um time que se acovardou em sua própria casa, coisa que até hoje é comemorada no Uruguai, até porque foi a última Copa que eles ganharam, há sessenta e quatro anos atrás. Hoje o lance seria dissecado em vinte ângulos diferentes para se concluir se o infeliz afinou ou não para o bravo uruguaio. Bigode passou o resto da vida tentando desmentir a bofetada, mas ninguém lhe deu ouvidos. O mito já havia sido criado e as pessoas tinham fome de mitos. Hoje os mitos tem que ser literais, portanto, deixam de ser mitos.
Tenho vontade de escrever um livro sobre uma velha terapeuta num asilo e uma criança que vem puxar assunto com ela. A recorrência da dupla velha senhora/criança curiosa é um sinal, claro, de pouco recurso literário desse autor aqui, mas tudo bem. Tenho um diálogo já escrito mentalmente em que a criança pergunta para a senhora o que ela fazia da vida. Ela vai responder, sorrindo, que era uma “apanhadora de histórias”. A criança pergunta o que seria isso, a velha senhora responde que ela ficava numa sala onde as pessoas entravam e começavam a contar as suas histórias e histórias que se fundiam e derivavam dessas histórias originais, até montar um painel em suas mentes onde as coisas começavam a ter significado, como um quebra cabeça que vai se juntando, com peças que não pareciam ter nenhuma ligação entre si. A criança pergunta por que ela não apanha mais histórias, ela vai dizer que com os anos as pessoas pararam de tecer narrativas e não conseguiam mais construir frases, ou histórias, com mais de 140 caracteres. Nem tinham paciência para ouvir ou ver nenhum filme com mais de 4 minutos. A velha senhora conta que, a partir daí, as pessoas iriam aos consultórios para poder ficar alguns minutos em silêncio. Ter o próprio silêncio testemunhado por alguém era a última fronteira dos divãs. Sem mencionar que era um dos últimos lugares em que duas pessoas podiam estar juntas sem a presença de uma webcam. A criança insiste, e pergunta por que ela parou de fazer isso. A senhora responde: e quem falou que eu parei?

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