sábado, 22 de março de 2014

O Olhar do Clínico

O final de semana passado foi meio corrido e acabei não postando nada nesse blog. Obrigado pelas mensagens de reclamação. Para caprichar nesse post e compensar a mancada, fui assistir mais uma vez um dos meus filmes favoritos da safra do Oscar: “Dallas Buyers Club”, ou “Clube de Compras Dallas”, um filme de baixo orçamento que arrebatou duas estatuetas de peso, de melhor ator e melhor ator coadjuvante. O filme passou como um raio pelos cinemas e espero que os interessados possam vê-lo em DVD. Para quem não sabe, o filme conta a história de Ron Woodroof, um eletricista homofóbico e sexualmente promíscuo que se descobre com AIDS em meados dos anos 80. Na época, não era um diagnóstico, mas uma sentença. Quando ele recebe a notícia, o médico estima mais trinta dias de vida para o caubói, amigo dos rodeios. Ele resolve que simplesmente não vai morrer daquele jeito e passa a buscar todas as poucas alternativas terapêuticas da época. Uma delas era uma droga chamada AZT, que ele começa a comprar de um auxiliar de enfermagem. Quando o suprimento da substância passa a ser controlado, o auxiliar dá a Woodroof o endereço de um médico no México que poderia manter o seu fornecimento. Ele vai até o México mais morto que vivo e encontra o tal médico, Dr Vass, cuja Licença Médica havia sido caçada nos Estados Unidos e estava clinicando num hospital de Terceiro Mundo, onde os rapazes das Agências reguladoras não ficariam enchendo o seu saco.
Ron descobre muita coisa no contato com Dr Vass e vou parar de contar o filme nesse ponto, então não se preocupe quem não o assistiu ainda. Dr Vass afirma que a droga milagrosa vendida a peso de ouro pelo laboratório atacava o Vírus da Imunodeficiência Humana (conhecido como HIV) mas destruía também o Sistema Imune de quem o recebia, acelerando a progressão da doença. Raciocinando, coisa pouco comum nessa época de Medicina baseada em Evidências, Dr Vass tratava a doença com medidas que visavam fortalecer o Sistema Imune dos pacientes, com coquetéis vitamínicos, um antiviral menos tóxico, o DDC, e o Peprídeo C, um fragmento de aminoácidos que deixava a célula mais resistente à entrada do vírus. Ron começou a melhorar e ganhar peso e o filme vai mostrar a sua luta para estender às pessoas esses medicamentos, enfrentando lobbys do sistema de saúde.
O filme levanta muitas questões capazes de fazerem corar um médico ou um representante da Indústria Farmacêutica, sobretudo o sistema de malversação da verdade que está por trás de muitos ensaios, mas não são o foco desse post. O que me arrepia os cabelos é o personagem do médico, que não responde a Ron quando lhe pergunta por que caçaram a sua Licença. Pelo que se segue no filme, o que se sugere é que Dr Vass pauta a sua prática clínica pelas estratégias terapêuticas que funcionam, desrespeitando os protocolos. Isso deve ter contribuído para o desgaste com as Agências.
Em um post antigo, foi comentado nesse blog que proibir os propagandistas de dar canetinhas com a marca dos medicamentos aos médicos era como o sujeito que pegou a mulher traindo-o no sofá e vendeu o sofá. O lobby poderoso do saber médico é gerado pela produção da literatura da área, não pelas canetinhas importadas da China. Um médico que foge aos protocolos e usa um medicamento fora das indicações em Bula (o nome dessa prática é uso Off Label da medicação) está sujeito a ser questionado e condenado judicialmente. O sistema que domina a prática é fortemente regulado pelos colegas das Agências, no filme o FDA, que autorizou o uso do AZT mas proibia a importação de estimulantes da resposta imune, por não “terem sido aprovados”. O Peptídeo C, até onde eu sei, não foi aprovado até hoje, um quarto de século depois dos fatos descritos no filme. E quem financia os ensaios que vão provar se um medicamento é ou não eficaz? Adivinhe o leitor desse blog.
Dallas Buyers Club é um filme difícil e de assunto delicado. Eu gostei e recomendo. A reflexão que mais me tocou é que o médico, na solidão de seu consultório e sua prática clínica, precisa exercer o tempo todo um profundo senso crítico e um profundo senso clínico para contrapor o que falam os estudos quantitativos, que analisam a resposta de milhares de pacientes, aos estudos qualitativos de sua escrivaninha, vendo in loco o que funciona e o que é balela no discurso reluzente da Propaganda e do Sistema. Para isso, a sua capacidade de observação e entendimento devem ser treinadas todo dia. Dr Vass que o diga.

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