domingo, 2 de março de 2014

Leva no Coração uma Ferida Acesa

Já assisti a algumas entrevistas do ator Lima Duarte. Não muitas, seja porque ele não as concede, seja porque vejo pouca TV aberta. Mas posso me lembrar que, nas três vezes em que ouvi o grande ator falando de sua vida, em todas ele mencionou que sua carreira começou quando foi expulso de casa por seu pai, um matuto sem muita vocação para a paternidade. Ele tinha apenas dezesseis anos, e botou o pé na estrada, foi para o Rio de Janeiro, sobreviveu de subempregos até começar a trabalhar na nascente e mambembe TV brasileira, e o resto é uma página gloriosa de sua história. Pois em todas as entrevistas ele conta a mesma história e, ao perceber o olhar constrangido do entrevistador, ele remenda: “Ele sabia que eu estava pronto”. Conversa mole. Sabia nada. Só queria ter uma boca a menos para alimentar, ou vai saber se o homem amargou esse erro por toda a sua vida. Lima Duarte, monstro sagrado da televisão e das novelas brasileiras, vive sozinho e meio recluso em seu sítio, no interior do Rio de Janeiro.
As pessoas normalmente ficam constrangidas quando são apresentadas a um psiquiatra. Geralmente a conversa é entremeada de risos amarelos, mas a pior parte é quando o gelo é quebrado e a conversa se volta para a curiosidade do interlocutor: aquele menino matou mesmo a família e se suicidou? O rapaz que empurrou a moça nos trilhos do metrô é esquizofrênico? O remédio que a minha tia toma para o Pânico é mesmo o melhor? As pessoas imaginam que o psiquiatra tem uma espécie de visão de raio X e que vai descobrir todos os esqueletos que ficaram ganhando poeira no armário. Não sei se tenho ou não essa visão de super herói, mas garanto que tenho pouca disposição para usá-la fora do meu consultório. Mas posso confirmar que às vezes, como no caso das entrevistas do Lima Duarte, posso ter uma percepção quase visceral de sua dor e de sua ferida. Posso sentir essa dor empurrando o homem para a solidão. Como Édipo, que teve os tendões cortados e foi abandonado na montanha para servir de lanche aos predadores, a expulsão de casa e a necessidade de sobreviver sozinho calaram fundo na alma do grande ator, e pode mesmo ser a origem de sua capacidade impressionante de encarnar personagens cômicos ou trágicos. Dá para sentir a dor de longe, bem de longe.
Édipo tentou superar a sua dor tornando-se o salvador e o Rei de Tebas. Lima transformou a sua dor em Zeca Diabo e Sinhozinho Malta. Somos feitos dessa sensação de ferida e de falta, tão descrita e analisada pela Psicologia e a Arte. Procuramos o tempo todo alívio para essa coceira que pode virar uma chaga. Ou fingimos que ela não existe. Quem entra nas redes sociais pensa que o mundo virou um imenso Castelo de Caras. Ninguém sofre, ninguém passa por decepções e fracassos, ou discute os próprios erros. No Novo Testamento, Jesus observa que a pessoa vê um cisco no olho do Outro, mas não percebe uma trave tampando a própria visão. O mesmo vale para a ferida. Olhamos e identificamos muito bem a do vizinho. A sua própria, é melhor fingir que ela nem existe. Ou só existe nos outros, que são o Inferno, como disse Sartre. Poucas são as pessoas que identificam e conhecem a própria ferida. E o que é pior, ficam jogando a sua dor na cara dos outros para ver se melhora. Um dica para todos: não melhora. Mas o que melhora? Cuidar da própria ferida pode ser um bom começo.

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