terça-feira, 4 de março de 2014

Responsabilidade

Esse post vai ser um pouco diferente da variedade algo caótica de assuntos desse blog. Ele vai ser uma continuação do tema anterior, então convido o visitante que tiver tempo e paciência a ler o post anterior, de dois dias atrás. Retomo: Laio, Rei de Tebas, vai a um oráculo e lá recebe a terrível profecia que o seu filho recém nascido iria matá-lo e desposar a própria mãe. Laio, como Freud, levou o assunto um pouco ao pé da letra e mandou matar o bebê. Como costuma acontecer nas fábulas e nos filmes de ação, a ordem não foi cumprida diretamente. Os executores cortaram os tendões do menino e o deixaram para ser devorado pelas feras. Uma forma um tanto estranha de cumprir, ou não cumprir, a ordem. O menino foi encontrado por camponeses e criado com amor no lar adotivo, mas mancou o resto da vida por conta do aleijão que lhe foi imposto.
Lembro de uma senhora que compareceu a meu consultório apenas uma vez e nunca mais voltou. Uma frase de sua consulta me ficou marcada para sempre: “Eu sou um aborto que anda”. Como no caso de Édipo, sua vida tinha sido ameaçada por seu pai, que insistia para sua mãe fazer um aborto. Teve depois o péssimo gosto de contar o fato à sua filha, ou talvez algum parente ressentido tenha revelado a história. Ela se agarrou a esse mito familiar e construiu para si uma história de isolamento, rancor e, se olharmos mais profundamente, uma história de não vida. Ao contrário de Édipo, que com certeza nunca seria um atleta profissional, então tratou de ser o mais inteligente e astuto homem de seu tempo, essa senhora abraçou a própria ferida e a transformou numa segunda pele. Nada poderia ser cobrado ou se esperar dela, já que era um aborto vivo. Conheço outra senhora que vive torturada pela filha, que alega que tudo deu errado porque ela “não foi amamentada”. Como podem notar o leitor e a leitora desse blog, viver do próprio aleijão não é especialidade só dos coxos nos semáforos, mas de muita gente de posse e de pose. Talvez por isso que o troféu da vítima seja sempre tão disputado.
Para os coitados de plantão, aqui vai a má notícia: somos compostos em nossa Psique, por alguma ferida. Freud chamou isso de Cena Primária, os junguianos a chamam de Ferida Arquetípica. Os Budistas dizem que toda vida senciente se caracteriza pelo sofrimento. Não parece uma visão muito otimista, mas tem muita gente dizendo e descrevendo essa estrutura. A outra má notícia é que a Ferida é uma responsabilidade pessoal. Não adianta tentar terceirizá-la, ou passar a vida cobrando o suposto autor da ferida. Não adianta fingir que ela não existe, nem jogá-la na cara dos outros, nem castigar quem não fez nada para tentar fugir da dor.
Essa é lei de Spinelli número 33 (acho): “Ou você dá conta da ferida, ou a ferida dá conta de você”. A única boa notícia é que, quando você para de fugir e assume a responsabilidade de cuidar de sua ferida, uma linha é atravessada: a linha que separa a infância da idade adulta. Tem gente que nunca faz essa passagem, e sua vida vira um aborto de si mesma.

3 comentários:

  1. Caracas, pesado esse post pra depois do Carnaval !!!

    Mas verdadeiro. Abraço. Tô com saudade das nossas conversas...

    Edison

    ResponderExcluir
  2. Pleno carnaval!!! Hora de tirar as mascaras vero? Ok...vamos em frente cuidar das próprias feridas!! Abraços

    ResponderExcluir
  3. Visceral, mestre! Beijos, Priscila

    ResponderExcluir