domingo, 9 de março de 2014

A Responsabilidade e o Outro

Recentemente foi notícia, primeiro nas redes sociais, depois na mídia impressa, uma prescrição de um médico da rede pública, que “receitou” para uma paciente uma série de cadeados para ela emagrecer: cadeados para a boca, para a geladeira, para a despensa, a bolsa, cadeados que traziam uma agressão muito comum para os obesos ou os portadores de outras compulsões além das alimentares: fecha a boca, interrompa o comportamento, organize o seu consumo. A moça, que tinha e ainda deve ter muita dificuldade de controlar suas compulsões alimentares, não teve dificuldade nenhuma em fotografar a “prescrição” e botar a boca no trombone, mostrando o abuso que sofrera. O colega em questão tirou uma licença e veio a público para dizer que havia sido mal interpretado e que não quis causar mal ou humilhação à moça. Como os tais assuntos de redes sociais não duram mais do que alguns poucos dias, ou horas, ou minutos, o assunto caiu no esquecimento e as pacientes daquele postinho ficaram com um médico a menos, esperando por algum médico cubano que fique algum tempo por lá antes de fugir para Miami.
Estamos falando sobre a droga de nosso tempo, a autoindulgência. No último post, falei sobre a existência da ferida que nos constitui e a responsabilidade sobre ela, que é, antes de mais nada, do dono da ferida. Li em um livro de um mini monge que adoro, Tich Nat Han, que as monjas de sua comunidade tiveram um período de encontro com freiras católicas e voltaram reclamando, divertidas, que as freiras terceirizavam a salvação colocando tudo nas costas de Jesus, enquanto ele vivia dizendo que a salvação só poderia vir de sua prática diária e busca incessante. É lógico que isso é um gracejo, não uma ofensa. Jesus também dizia para quem quiser ouvir que não há perdão para quem enterra os próprios talentos. O fato é que cuidar da própria dificuldade e procurar caminhos é tarefa de todos. E o esforço e dedicação pessoal contam, e muito para qualquer caminho, espiritual e pessoal.
Não é difícil entender o que causou a explosão do médico: a moça deve ter uma dieta com excesso de carbohidratos e gorduras, come mais do que precisa e, sobretudo, come de forma desregrada, desorganizada. Chega diante do médico e reclama que não consegue emagrecer, como se comer fosse um ato involuntário (e, no caso das compulsões, é quase um ato automático). Ela deposita a responsabilidade de seu emagrecimento no médico e pede uma balinha mágica que queime gordura sem que ela precise mudar nenhum de seus (maus) hábitos. Já o médico esperava pacientes que seguem as orientações, melhoram e ainda idolatram o bravo apóstolo da ciência médica. Muito provavelmente despejou na moça a frustração de não conseguir ajudar muita gente, assistindo a Obesidade, o Diabetes (irmãos siameses em nossos dias) a Hipertensão e outras doenças crônicas fazendo o que costumam fazer, que é se tornarem mais crônicas e mais complicadas. Tudo isso diante do olhar impotente do médico, que se defende não dando a mínima.
Os dois padecem da mesma doença: a incrível capacidade de transferir as suas dificuldades e frustrações para o Outro. Temo que, mais de um ano depois do evento, a moça continue obesa e o médico apenas esteja evitando colocar o seu preconceito por escrito. O pior é que ambos podem estar morrendo de pena de si mesmos, esperando que algo ou alguém venha mudar o seu destino.

Um comentário:

  1. Acho que é o mal do novo século: transferir sua dor e seus problemas para os outros....
    De qualquer forma, neste caso (médico-paciente), o médico realmente foi totalmente anti-ético.
    bjos,
    Lúcia

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