sábado, 14 de janeiro de 2012

O Inferno do Eu

Foi nas primeiras décadas do século passado que um neurologista austríaco de nome Sigmund Freud descobriu um tesouro na cura das moléstias ditas “nervosas”: a cura pela fala, que depois foi chamada de Psico-análise. Esse aventureiro psíquico percebeu que alguns sintomas histéricos, como paralisias imaginárias, tinham como fator gerador alguma experiência traumática passada, esse trauma se alojava em uma camada Inconsciente de nossas redes neurais e lá passava a exercer o seu efeito destrutivo, drenando energia de nossa consciência. Alguns anos depois, Freud abandonou a teoria do Trauma e passou a observar que na base de muitos sintomas havia o Conflito, duas vontades, a Consciente e a Inconsciente, brigando em nossa alma gerando bloqueios, medos, disfunções. Veio aí a sua Teoria da Sexualidade. A humanidade fora fundada em torno da repressão às suas pulsões básicas. A sexualidade seria das pulsões mais reprimidas e introjetadas, retornando depois como sintoma. Apesar de dado como cientificamente morto pela moderna neurociência, o que eu pessoalmente acho uma grande bobagem e uma vendetta de décadas, Freud continua exercendo influência com suas idéias a tudo que se pensa sobre a economia psíquica de cada um. É certo que a repressão às pulsões sexuais diminuíram muito no decorrer do século, e o ser humano não tornou-se muito melhor com essa libertação. Pelo contrário, somos hojes prisioneiros de um mundo em que a perversão não é mais reprimir as pulsões, mas ser escravo delas. A pulsão oral virou-se em compulsões alimentares, comer de tudo, o tempo todo, tronou-se uma epidemia ocidental, o que já abordamos em outros posts. A pulsão anal, sobretudo a necessidade de reter, dominar, torturar quem não tem, é moeda de troca de todo sistema capitalista, baseado nas pulsões tornadas perversas. A pulsão genital, por seu lado não anda lá muito bem das pernas, dominada pelas outras pulsões. Sexo hoje é um bem de consumo, regido pela compulsão e necessidades de poder. Está longe do Gozo que o Freudismo e sobretudo o Lacanismo prometiam. O Gozo é solitário, virtual, masturbatório.
Essa é uma característica de nossa geração Autoestima: eu quero, eu mereço, você tem que me dar. Uma solidão coletiva dispersa nas mídias sociais. Essa é a prisão do Ego e da Falta: eles são intermináveis. A Falta se alimenta de mais Falta, que gera mais Falta.
Para não ficar só na impressão de crítica rabugenta, foi recontar uma parábola que está em um livro de Nilton Bonder, outro que, como Freud, recupera as tradições judaicas para nossa pós modernidade. A história é de um rabino, um guia espiritual que depois de uma vida de entrega e devoção ao Outro e à espiritualidade, teve a oportunidade de ver com seus próprios olhos o Purgatório e o Paraíso. Quando foi ao Purgatório, surpreendeu-se com uma mesa farta de banquete, com iguarias e gozo infinito. Nada de demônios ou fogueiras eternas. As pessoas se sentavam à mesa, diante da absoluta abundância, mas choravam e se lamentavam por toda eternidade. O homem santo foi se chegando mais perto, procurando entender a razão de tanta dor. Chegando mais perto, percebeu que as almas tinham as mãos invertidas, voltadas para frente. Estavam diante de toda fartura e toda abundância, mas não conseguiam trazê-las para a própria boca. Quando foi para o Paraíso, teve nova surpresa: havia a mesma mesa, com as mesmas delícias e possibilidades. As pessoas, ao contrário das anteriores, não choravam, pelo contrário, gargalhavam em uma felicidade radiante. Chegando mais perto, teve nova surpresa, de notar as almas com as mãos viradas, exatamente como no Purgatório. Elas não podiam trazer o alimento para a própria boca. A diferença entre o Purgatório e o Paraíso é que, no Paraíso, as mãos eram usadas para alimentar o Outro. Um dava comida na boca do próximo, de modo que ninguém sentia fome, além da alegria adicional de cuidar de alguém.

Um comentário:

  1. Verdade.
    Se Dr.Freud soubesse como se deu a sensível diminuição das repressões sexuais,com seus resultados, acho que ele voltaria a reforçar as teorias do Trauma e do Conflito (hahaha!!).
    Nós, seguidores desse rico blog, ganhamos um presente de Natal, que até hoje eu estou curtindo.
    O presente se chama " Fragmentos de Borges e Felizes os felizes".
    Tenho a felicidade de dizer que li e ainda leio diversas vezes aquele post. Para refletir, introjetar, digerir... enfim um presente para o ano inteiro! Conteúdo para uma vida inteira.
    Assim como neste atual post,em que também a parabola é sensacional!!!Algo para se pensar a cada escolha, na diferença sutil que inúmeras vezes nem é percebida.
    Bem, obrigada Dr. pelos presentes que nos oferece neste blog.Sinto-me realmente presenteada.
    E bom mesmo é fazer bom proveito dos presentes que se ganha, não é?
    Pois continuamos nadando...

    Abraços muito gratos,
    Sonia

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