A velha senhora se ajeitou na cadeira, como se preparando para uma batalha intelectual. A menina olhava para ela, muito séria mas também divertida, pois conseguiu o que queria, continuar a conversa.
- Agora eu vou começar a falar e você vai escutar, tá bom, mocinha? Vou falar dessa folha que você surrupiou das minhas anotações, sua aplicação ao tratamento das doenças e depois eu vou embora, que Edward está me esperando.(Para quem não leu o último post, Edward é o gato da senhora). Estamos combinadas?
Levantou a mão. A senhora bufou.
- Fale.
- Posso fazer perguntas?
- Claro que pode.
- O que significa surrupiou?
- (Risos) Você pegou a minha anotação sem que eu percebesse, certo? Isso é surrupiar, afanar, passar a mão no que não é seu... Entendeu?
Assentiu com a cabeça.
- Então vamos lá. Qual o significado de trazer para um simpósio esse conhecimento milenar gerado por homens simples, que, ao nosso ver, ficavam tateando no escuro as ligações e as propriedades das diferentes substâncias químicas? Para a Ciência Moderna, a religião que está em voga em nossos dias, aqueles escritos em latim não tem nada a acrescentar ao que foi descoberto desde a Tabela Periódica, quando os homens aprenderam a conhecer e manipular as substâncias e os elementos químicos. Os alquimistas continuariam perdidos no esquecimento de seus livros empoeirados se um psiquiatra suíço, chamado Carl Jung, não tivesse descoberto um valor oculto naqueles trabalhos. Para esse senhor, os alquimistas, na sua busca pela Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida, acabaram descobrindo a maneira intrínseca que faz funcionar a natureza da matéria e da psique humana. Você está entendendo o que estou falando?
Balançou a cabeça, num “mais ou menos” ressabiado. A senhora não se impacientou.
- Os alquimistas eram pessoas que, desde a China Antiga e do Egito procuravam, através de experiências em seus laboratórios, entender e conhecer as propriedades da matéria. Eles queriam fabricar remédios e extrair das plantas e das substâncias químicas uma forma de curar doenças e deter o processo de envelhecimento.
Levantou a mão.
- Pode fazer a pergunta sem levantar a mão.
- O que os Alquimistas queriam descobrir é a mesma coisa que a Medicina e a Farmacologia modernas tentam fazer, que é controlar as doenças e prolongar a vida, certo?
Olhou para a menina com espanto, e teve que aturar aquela cara de “estou sempre te surpreendendo”.
- Muito bem, mocinha. Você levantou uma bela de uma lebre. Os alquimistas procuravam pelo que o homem procura desde que desceu das árvores: conhecer e dominar as forças da Vida e da Morte. Vou anotar essa sua ideia para a minha próxima aula. Só tem uma boa diferença: a Ciência procura por formas de atuar diretamente na matéria, mofificando-a. Os alquimistas procuravam pelo conhecimento do Oculto, o que não aparece na experiência.
- Os alquimistas procuravam por Bob.
- Exatamente! Os alquimistas procuravam pela ordem profunda que existe na matéria e, quer saber, no envelhecimento, na doença e na morte. Tanto que a primeira fase da Obra, do Opus Alquímico sempre tinha a ver com a morte. Mas você está me fazendo correr muito com a aula. Deixe-me voltar ao ponto da minha anotação...(Folheando as anotações)...Deixe-me ver... Ah, aqui está: o que Jung descobriu é que muito o que aqueles escritos antigos descreviam era a mesma coisa que ele via, todo dia, no seu consultório. A obra alquímica e o desenvolvimento psíquico tinham muitas coisas em comum.
A menina olhava com cara de paisagem.
- Vou te dar um exemplo. Uma pessoa chega para tratamento. Está deprimida. Perdeu o emprego, ou o casamento, ou teve uma decepção muito profunda com a vida. Tudo parece morto naquela depressão. Nada parece ter significado mais para aquela pessoa. O alquimista, isso é, o terapeuta, começa ficando perto daquele sofrimento.
Os seus olhos se acenderam.
- Ficando perto como?
- Simplesmente ficando perto do sofrimento sem opor resistência. Muitas vezes, o que estava morto fica ainda mais morto. As pessoas ficam muito assustadas quando alguém está nessa situação. Gritam: você precisa reagir! Você não está se ajudando! Seja uma pessoa positiva! E aí? Aí, nada. A imobilidade vai durar o tempo que durar. O terapeuta fica lá, do lado, esperando pela hora que a coisa vai começar a gerar energia. O terapeuta, como os alquimistas, precisa ser paciente. Esperar a hora certa para atacar, para arrancar a pessoa da imobilidade. Senão, nada acontece: pode entupir o sujeito de remédios, pode fritar a cabeça com choques e pulsos magnéticos, pode passar vinte e oito filmes de autoajuda, nada vai fazer o que está parado voltar a andar enquanto a energia não vier de dentro.
A menina falou com voz quase imperceptível:
- Isso é como uma quimio?
A senhora voltou-se para ela, em espanto.
- Perdão, querida, o que você falou?
- A quimioterapia não é exatamente assim? A pessoa fica cansada, parece que passou um caminhão por cima, não quer fazer nada e, de repente, acorda melhor, começa a ter vontade de sair, de ver o sol, de comer pudim... É assim, não é?
- Querida, como é que você sabe disso?
- Não se preocupe. Eu sei. Volte para a sua aula.
Obedeceu.
- Essa é a fase inicial da Obra, querida. A Obra em Negro. Os alquimistas sabiam que, para o novo surgir, é preciso que o velho antes. Por isso as células morrem, as fases da vida mudam e o que tem que acabar, acaba.
A menina abaixou os olhos, digerindo tudo aquilo. Nos seus olhos, havia uma estranha compreensão.
- Ao contrário do que as pessoas pensam, meu bem, a morte é só um começo.
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Senhor Doutor...
ResponderExcluirNāo sei se é a chuva que cai fora de hora aqui na praia...ou se sāo as gotas dessa chuva que lavam minha alma...Mas suas palavras conseguiram entrar onde deveríam.
Elas penetraram minhas entranhas.
Talvez vc deva insistir nisso...
Muito talvez tenha sido por ter visto este sofrimento da quimio desta menininha, Minha Māe.
A morte é só um começo (?). Mas qual morte? E qual começo?
ResponderExcluirAh, que bom que a paciência lhe acompanha tão bem! Penso se essa morte tem que ser sempre morte morrida ou pode ser morte matada… parece que suicidio seria não deixar morrer… As coisas duram o tempo que tem que durar então? Isso parece dar uma sensação de impotência. Concscientemente sabemos e tentamos forçar a morte (porque muitas vezes tentamos seguir os conselhos: reaja, bola pra frente, vem algo melhor…) mas ela só ocorre quando inconscientemente estamos prontos pra ela? Já que o negócio está no invisível, como eu ajudo esse inconsciente dar a volta por cima mais rapidinho hein? Apesar que olhando pra trás eu estou ótima! rs sempre bom ler suas linhas.
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