sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Deusa da Balada

Hoje acabam as “férias do blog”. Continuarei os textos em forma de diálogo em outro espaço. A tragédia de Santa Maria, que hoje completa uma semana, me puxou de volta para os textos em primeira pessoa.
Ontem eu ouvia no rádio do carro entrevistas com familiares que foram buscar pertences das vítimas do incêndio. Um pai falou sobre a sensação de irrealidade que uma perda dessas provoca. Mesmo assim ele sentia a necessidade de compartilhar todas as suas sensações com outros pais, outros filhos, outras bandas que tentam ampliar a sensação de euforia com pirotecnia em locais fechados. A única coisa que pode dar sentido a esse não sentido é alertar, espalhar pelo mundo todo essa dor em vazio que ele estava sentindo. Uma dor que ultrapassa em muito o limite das lágrimas. As lágrimas não podem expressá-la. O tio de uma menina de 27 anos que trabalhava como caixa da boate Kiss observou que aquela era a última noite de trabalho de sua sobrinha. Ela precisava de 35 reais para pagar o conserto da bicicleta de seu filho de onze anos. Entre lágrimas ele murmurou que a sua sobrinha havia morrido por 35 reais.
Eu estava voltando de viagem quando ouvi no rádio a notícia pavorosa. Passei o último Domingo colado na TV, coletando informações, tentando entender o que havia acontecido, que mão invisível determinou quem conseguiu sair e quem perdeu a vida naquela câmera de gás que virou uma casa noturna no interior gaúcho. Foi lá, mas poderia ter sido em qualquer lugar. Os donos da boate ou os moleques que soltaram os fogos são genocidas, assassinos irresponsáveis e merecem o linchamento moral e o horror da opinião pública? São os bodes expiatórios de nossa inconsciência? Essa tragédia, como outras, repousa em um mecanismo de defesa tão antigo como universal: o autoengano. O discurso inconsciente que cria uma sensação agradável de “comigo não vai acontecer”. As tragédias ocorrem só com aqueles personagens distantes dos noticiários. Não há risco em pegar o carro do namorado e guiar pelas ruas, ambos bêbados. Não tem problema dirigir com seu bólido a 130 km por hora dentro de uma rua pequena. Soltar rojões em ambientes fechados? Sem problemas. Colocar um isolamento acústico com uma espuma que, ao ser queimada, solta gases tóxicos e causa morte instantânea em quem estiver no recinto? Mas eu não sabia, meu Deus. O revestimento parecia tão bom e sobretudo, barato.
Ano passado eu invoquei num post a deusa da Adolescência, Ártemis e pedi a sua proteção a essa molecada que atravessa essa noite de iniciação e que pode se perder no excesso, no desespero de aproveitar cada momento. Parece que a balada é o templo onde se celebra essa passagem, essa euforia de que sou jovem e não preciso ser escravo do trabalho, nem das responsabilidades, nem preciso trabalhar em dois empregos para pagar a bicicleta quebrada de meu filho. Pensando bem a adolescência é o lugar em que todos querem estar; as mulheres de cinquenta e tantos anos querem se vestir como suas filhas, os gordinhos carecas da minha geração querem pegar as ninfetas e o mundo quer se transformar à noite, numa gigantesca, infinita balada onde todos se divertem e todos os excessos são perdoados.
Ártemis era a deusa da caça, conhecida pelos romanos como Diana. Como um Peter Pan da Mitologia Grega, nunca envelhecia. A sua imagem é sempre de uma menina, ou moça, empunhando o seu arco e flecha. Nos tempos antigos um jovem começava a ser adulto passando uma noite escura na selva, tentando trazer a caça para o seu bando. Uns conseguiam atravessar essa noite, outros se perdiam na selvageria, ou no medo e não passavam pela prova. Hoje, nossos jovens vão atravessar a sua noite de iniciação dentro das baladas infinitas. Oramos por eles em sua jornada, que sejam protegidos e completem a travessia, com o arco protetor da deusa.

Um comentário:

  1. Oi Spinelli,

    Muito legal o seu texto!

    Diante da dor indescritível desses pais que viram seus filhos terem a vida tão cedo interrompida, deve-se atentar para os maiores problemas deste nosso país: falta de compromisso, improvisação, suborno, corrupção e impunidade.
    Nós todos temos que lutar para que as coisas possam mudar! Acho que se pode começar punindo os culpados.
    bjos,
    Lucia Andrade

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