domingo, 26 de maio de 2013

Compaixão e Chocolate Quente

O leitor desse blog, Fábio, fez um comentário sobre o post sobre o Olhar de Compaixão: como diferenciar a verdadeira Compaixão com as suas primas tortas, a Pena e Leniência?(Não foram essas as palavras, mas acho que resumem bem a questão). No post eu falava sobre um sonho lancinante descrito num livro de Bel César: No mesmo, ela estaria condenada à morte e passaria por uma espécie de Via Crucis: primeiro sentaria em suas próprias fezes, depois nas fezes de outras pessoas, depois deixaria um bilhete agradecendo “a todos que testemunharam a sua vida com compaixão”. O sonho pode ser lido em infinitos recortes, é lindo e arquetípico, ou seja, fala de coisas que tem a ver com psique do sonhador mas também com a psique coletiva, ou seja, todos nós. Fiz um paralelo com a formação de um terapeuta, que precisa, antes de mais nada, se haver com as próprias fezes, sentar sobre as próprias feridas e os próprios medos, antes de poder escutar o Outro. Sentar sobre as fezes alheias é uma característica complexa do ofício, significa tomar para si as dores do Outro, aguentar as agressões e o amor contido em tantas frustrações que a vida reserva ao nosso Ego grandioso. A parte em que ela deixa um bilhete de agradecimento é particularmente bonita: nossa trajetória na vida é quase sempre solitária, temos que arcar com a responsabilidade de nosso desenvolvimento e ai de quem quer transferi-la para outra pessoa, para um grupo ou um guru carismático. A tarefa é pessoal. O Outro faz parte dela, claro, e o terapeuta testemunha essa singularidade, testemunha o Mistério de cada vida e as escolhas ou fugas que fazem parte de cada caminho. Testemunhamos e somos testemunhados, no sonho ela agradece quem fez isso com olhos de compaixão. Mas o que seria a tal da compaixão?
Há um monge e místico cristão que muito gosto e já devo ter citado em outro post desse blog, Jean Yves Leloup. Ele escreveu uma biografia também lancinante: “O Absurdo e a Graça”. Nesse livro ele aborda a sua biografia como místico, que começa no seio de uma família pobre e com sérios problemas de afeto. Segundo Leloup, nessa família ele havia “nascido para morrer”. Minha impressão é que ele foi daquelas crianças que a mãe desejou muito abortar mas não teve os meios, ou a coragem de fazê-lo. Isso tem conserto, essa fantasia acompanha algumas gestações e pode ser reparada pelo amor pelo bebê que venceu essa fantasia. Não foi o que aconteceu entre ele e sua mãe. Eles nunca conseguiram esse encontro. Isso garantiu a ambos uma vida em que sempre andaram às turras, sempre em desencontro e culpas, como tantas relações familiares. A sua infância passou bem longe das infâncias felizes: chegava a sumir de sua casa por alguns dias, sofreu de abusos e fomes e decretou para si mesmo que nesse mundo selvagem não havia nenhuma ordem intrínseca, nenhum Deus. Parecia que ele cumpriria a sua sina de morrer cedo, no meio do abandono, até um dia em que teve uma experiência de Compaixão: faminto, vagando nas ruas de sua cidade, foi chamado pelo garçom de um bistrô: uma senhora, que Jean Yves nunca conheceu, deixou pago para ele dois croissants e um chocolate quente. Ele sente na sua boca até hoje o gosto desse café da manhã inundando a boca de um rapaz faminto. Essa foi a sua Primeira Comunhão, a experiência do amor gratuito que nunca tinha vivido. No coração do Absurdo, que é o estado de solidão diante da Vida, a Graça, que veio de uma pessoa que testemunhou a sua condição com compaixão. Desde aquele dia, Jean Yves virou um peregrino e caiu no mundo procurando por quem lhe ensinasse sobre Deus.
Compaixão, portanto, não é ter peninha de ninguém, nem perdoar o imperdoável. Compaixão é testemunhar a ferida de alguém e oferecer para esse alguém uma boa xícara de chocolate quente, ou um pão na chapa bem feito. Compaixão é testemunhar a existência do Outro, que é única e importante em sua singularidade. Por isso que, como no sonho da Bel, testemunhamos e somos testemunhados, em meio ao Absurdo.

Um comentário:

  1. Muito bonito o seu texto!

    Outro olhar sobre a compaixão:
    É se colocar no lugar do outro. E se fosse comigo?
    Sentir o que o outro está sentindo.

    A compaixão de sentir peninha, realmente não leva a nada. Nunca vamos nos colocar no lugar do outro...

    Realmente a compaixão exige muito desprendimento de si mesmo....

    bjos,
    Lúcia

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