quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Olhar e a Compaixão

A minha cabeceira está sempre cheia de livros e é óbvio que alguns eu começo e não termino, outros eu curto mas não dou sequência, outros são antigos e ficam aqui como bons amigos, que podem ser abertos em algum momento. Um deles é de Bel Cesar, que faz uma aproximação entre a Psicologia Budista e a nossa. Não consigo terminá-lo, talvez pelo esforço da autora em compilar a maior quantidade de saber budista num livro só. Acho a aproximação entre Budismo e Psicologia um negócio muito delicado, que deveria se fazer de forma mais lenta. A maior impressão que seu livro me provocou foi o relato de um sonho da própria autora, que uma amiga junguiana sugeriu que ela relatasse, por ser um sonho coletivo, ou seja, um sonho daqueles que os xamãs reuniam toda a galera da tribo para ouvi-los, ao som do crepitar das fogueiras. Vou resumir o sonho aqui: “Sonhei que havia sido condenada à morte e antes de ser executada passaria por vários sacrifícios em várias salas (quadrantes). Os suplícios seriam testemunhados por algumas pessoas, que sabia que estavam presentes mas não podia vê-las. Na primeira sala, fui forçada a defecar, completamente nua e sentar sobre as minhas próprias fezes. Suportei a humilhação para acabar logo com aquilo. Passei para outro quadrante, onde fui obrigada a sentar sobre as fezes de outra pessoa. Uma voz interior me diz que eu podia me limpar antes de sentar sobre as fezes dos outros. Penso que se eu estiver limpa, não vou me sujar nas fezes de outras pessoas. Deixo uma carta para ser lida após a minha morte, em que agradeço às pessoas que testemunharam a minha vida com compaixão. Passo para um corredor, onde sou morta com uma pancada na cabeça”.
Caramba. Que sonho. Bel usou esse sonho para falar da sensação de vergonha, de fragilidade exposta publicamente, do olhar das pessoas que testemunham a sua Via Crucis. Não é um olhar indiferente e ela agradece a quem olhava para tudo aquilo com compaixão. Ontem um pivete atirou mais uma vez em um garoto de vinte e dois anos que lhe estendeu o celular sem resistir. Outro rapaz de idade semelhante foi morto algumas quadras depois, após levarem a sua mochila e celular. Muita gente já perdeu a capacidade de reagir a isso. A hiperviolência cria essa falta de sensibilidade. Ela agradece quem testemunha seu sacrifício com compaixão. O sonho é o próprio Mito Crístico, vivíssimo na alma da psicoterapeuta budista. A tarefa profunda do nosso percurso nesse planeta estranho: aprender a sentar em nossas próprias fezes, depois nas fezes do Outro, depois a violência sem motivo. Caros e fiéis leitores, eu sei: esse vai ser um daqueles posts ininteligíveis, com meia dúzia de page views. Mas agora não tem como voltar atrás. Vou até o fim.
Sentar sobre as próprias fezes é o primeiro passo no caminho do terapeuta. Significa analisar e penetrar nas próprias entranhas, em nossas feridas, nossos medos e ódios. Não adianta jogar para os outros, nem pedir para alguém fazer a tarefa por nós. A limpeza que ela percebe, no próprio sonho, está na capacidade de compreender e incorporar a relação com essas fezes psíquicas. Significa conhecer a nossa Sombra, o que está em nossos demônios, nós que nos achamos tão legais e puros. Se as nossas fezes estiverem bem elaboradas, aí o terapeuta pode sentar sobre as fezes alheias. Haja terapia e supervisão. O melhor e o pior do humano aparece em nossos sofás. A pancada na cabeça, por tráz, é a face do mal em nosso tempo: a pancada vem do nada, sem motivo, dar um tiro na traqueia de um semelhante apenas porque ele tem um celular bacana. Porque ele é um playboy e eu tenho a arma.
A parte para mim arrepiante do sonho é a gratidão aos que testemunharam a vida da terapeuta com compaixão. Uma das forças da terapia é o olhar do psicoterapeuta (vantagem dos junguianos, que não usam divãs) que testemunha as cenas bonitas e atrozes que saem do baú das memórias daquele que vem contar, mais uma vez ou pela primeira vez, a sua história. O engraçado é que a terapeuta, ao testemunhar a outra vida, acaba recebendo o olhar do Outro que está à nossa frente. Testemunhamos e somos testemunhados. Se tudo correr bem, com compaixão.

Um comentário:

  1. Sensacional.
    Nao acho ininteligível, alias, acho um dos mais interessantes de seus textos.
    O mais legal é que enquanto lia a sua "versão dos fatos", relacionava a mesma situação, mas do outro lado do balcão, imaginando o quanto, quando pacientes, falamos e reclamamos das cagadas alheias, sem ao menos, ver as nossas proprias, além da limpeza necessária nesse processo.
    Tá bom, além do seu post ser mais complexo que isso, um dos princípois basicos da terapia é exatamente essa percepção e reflexão, mas a correlação é inevitável.

    Somente me enrosco no termo: Compaixão.

    Não pela obvia vontade de ajudar ao proximo, mas talvez pelo sentimento de dó e piedade inerentes a palavra.
    OK, posso estar sendo um pentelho etimológico ou um ignorante contextual, mas uma das maiores virtudes do meu terapeuta, sempre foi ouvir minhas inquietudes, olhando nos meus olhos.
    Com isso, ele sempre teve base para aplicar o que deveria ter sido aplicado e eu, a confiança necessária para seguir com essa parceria de respeito e comprometimento mútuo.
    Isso vai muito além da compaixão...amor, eu diria.
    Amor ao proximo, a sua profissão e a si proprio.

    Assim eu sempre o vi e isso me fez muito bem.

    :)

    Abraço

    Fabio

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