quinta-feira, 30 de maio de 2013

Tears in Heaven

Foi há cerca de dois meses que Chiara, a cachorra de raça boxer que foi descrita em post anterior (Procura-se um Amor que Goste de Cachorros), começou a apresentar um comportamento muito diferente. Definitivamente diferente. Chiara sempre foi a manifestação da deusa Ártemis em pessoa; Ártemis é uma deusa grega que representa a eterna meninice, sempre com as suas saias curtas correndo atrás da caça. Ártemis representa o Puer, a criança eterna que habita em nosso Inconsciente e no mundo. Kika era a encarnação desse arquétipo e fazia uma dupla perfeita com Bunny, também uma boxer castanha, uma senhora tranquila e muito disciplinada na vigilância dos limites de nosso território. Chiara era a eterna criança, Bunny era a guardiã ajuizada. Não sabia que essa relação era mais profunda do que supõe nossa vã Psicologia. Bunny morreu no início de 2012. Chiara ficou muito triste. Trouxemos uma nova amiguinha para ela, uma bebê chamada Scarlett, que está nesse exato momento deitada ao meu lado enquanto escrevo. Kika não recuperou mais a antiga meninice. Tornou-se o cão dominante, a chefe respeitável da matilha. Após alguns meses da morte da Bunnyinha, desenvolveu um tumor perigoso para cachorros, um Mastocitoma, exatamente no lugar em que crescera o mesmo tumor na Bunny alguns anos antes. Ela foi operada com sucesso e teve recuperação rápida. Como ela sempre foi muito magra e vigorosa, tinha uma boa esperança que seria mais longeva, pois boxers são cães maravilhosos mas frágeis geneticamente, o que prejudica seu tempo de vida. Um ano depois, outro tumor apareceu.
Chiara começou a ficar indisposta e com medo de descer escadas. Estava descorada e sem brilho, sinais que um médico não consegue ignorar. Os exames detectaram uma massa no Abdomen, que era um Tumor de Ovário, também operado com sucesso. Há uma corrente na Oncologia que questiona o efeito inibidor do tumor primário sobre a doença que está se espalhando pelo corpo. Quando o tumor primário, a Matriz da doença, é removido, pode ocorrer o florescimento das metástases, daí a combinação da quimioterapia após a remoção desse tumor. Não deu tempo. A doença se espalhou rapidamente pelo corpo e nossa querida bichinha passou a ser uma paciente de cuidados paliativos. Tivemos algumas semanas para beijá-la, mimá-la e aproveitar cada minuto com ela, o que deveríamos fazer em todos os dias de nossa vida, mas não fazemos. Estamos sempre muito preocupados com o futuro para nos ocuparmos do milagre de cada dia. Chiara nos deu mais esse presente: cada dia em que ela acordava, melhor ou pior, era um pequeno milagre em que poderíamos aproveitar mais um pouco de nossos sentimentos compartilhados. Quando a noite chegava e o desconforto respiratório piorava, ela me olhava com olhos tristes e de medo. Eu dava o corticóide que melhorava o quadro, mas prometia que ela não seria humilhada pela doença. Enquanto ela tivesse prazer em estar com a gente e pudesse aproveitá-lo, estaríamos juntos.
Como costuma acontecer nesses períodos de perda, fiquei sem carro quando um motoqueiro destruiu a minha lanterna traseira. Como moro em Cotia, estava quase optando por dormir naquela Segunda Feira fria no consultório, seria mais fácil. Minha mulher me pediu para voltar e logo descobri por que. Quando fui deitar, percebi que Chiara estava parada diante de sua caminha, com medo de deitar e sufocar. Estava lá há muito tempo. Foi a hora de cumprir a minha promessa. Coloquei-a no carro para levá-la a uma clínica distante e rezei para ela dormir sem sufocar, que eu daria meia volta e tentaria esticar mais um dia de sua vida. Não aconteceu. Tive a esperança que a veterinária dissesse que não, ainda tinha lenha para queimar. Não tinha. Eu só conseguia lembrar de uma passagem no documentário sobre George Harrisson, em que a sua esposa dizia que ele ficou muito incomodado com a morte de John Lennon, pela forma como ele não pôde se preparar para deixar o seu corpo. Nós ocidentais somos muito ruins com esse assunto. Os orientais percebem que esse momento é muito importante e que a pessoa deve ser ajudada e orientada para deixar o corpo com os mesmos cuidados de um parto. Foi isso que me permitiu manter a calma e a sanidade na situação. Expliquei para ela o que estava acontecendo, preparei-a para deixar o seu corpo, que não tinha mais serventia e falei para ela continuar seu caminho sem se apegar a nada, nem ao meu amor. Quando ela suspirou, disse para ela que estava tudo bem. Estranhamente para nossa época de Ciência materialista, acredito em tudo o que eu vivi com ela naquele momento.
Acredito que estamos todos indo em alguma Direção, mesmo sem perceber. E sinto a Chiara brincando nos campos do Senhor, com a gordinha Bunny em seu encalço.

4 comentários:

  1. Eu lamento muito pela sua cachorrinha.
    Eu acredito que mesmo os animais, após a morte, também continuem a trajetória de suas almas desprendidas do corpo.
    bjos,
    Lúcia Andrade

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  2. Sinto muito Marco...
    Só uma pessoa de rara sensibilidade como você poderia expressar num texto tanto Amor, Respeito e Fé!

    Te admiro muito, muito mesmo!!!

    Um beijo com carinho.................

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  3. Força e Paz meu amigo.

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  4. Obrigado, gente. Cachorro é realmente tudo de bom, essa frase não serve só para vender ração. Bj

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