quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Godspell

Outro dia um paciente muito antigo e querido veio me contar da conversa com a terapeuta lacaniana de sua filha, quando mencionou que fazia psicoterapia junguiana há algumas décadas. Ela observou que Jung era um psiquiatra de orientação algo mística, ele óbvio, veio me falar, e eu devolvi o recado dizendo que me recuso a discutir esse assunto sem cerveja. O papo morreu aí, sem cerveja. Adoro a obra de Lacan e não fico mencionando que ele era, em sua vida pessoal, um monumento ao Narcisismo que tentava tratar em seus pacientes. Não confundo autor e obra. Jung já foi chamado de tudo: antisemita, místico, psicótico, romântico e por aí vai. Mas, parafraseando outra lacaniana que eu adoro, Françoise Dolto, para que tanto ódio?
Carl Jung era filho de um pastor protestante, muito pobre. Viu, após a sua adolescência, seu pai ser consumido por um profundo processo depressivo, embalado por uma também profunda crise de fé, que acabou culminando em uma doença oncológica que lhe tirou a vida. Penso que a escolha pela psiquiatria e uma parte muito grande da obra de Jung foram uma tentativa inconsciente de salvar o seu pai. Jung era eminente e profundamente, um psicoterapeuta cristão. Daí a acusação de misticismo. O capítulo em suas memórias sobre vida após a morte, que ele permitiu a publicação apenas após a sua própria, também não ajudou muito a sua fama. Mas o leitor e a leitora desse blog pode questionar: é uma acusação tão grave assim? É realmente tão ruim ser um místico? Não, com certeza, não. Mas Jung foi um pesquisador e fenomenólogo rigoroso, sempre descrevendo e checando cientificamente a validade de seus constructos. Não propôs uma teoria que nasceu de uma intuição ou uma visão da Verdade, por isso ele repudiava a "acusação" de misticismo.
Todo esse preâmbulo para falar do Cristianismo como um sistema de símbolos, como são as mitologias. o importante não é encontrar provas históricas da existência de Jesus, mas antes entender o fundamento da Consciência Crística, um estado de consciência ampliada que podemos atingir depois de muito trabalhar em nosso desenvolvimento.
Quando estive em Nova iorque, no começo do mês, fui a um musical da Broadway, com a forte recomendação de um amigo. O musical foi montado pela primeira vez nos anos setenta, e dá título a este post: Godspell. Fui meio cabreiro de encontrar uma montagem meio hipponga, meio datada, não foi isso que aconteceu. É uma montagem belíssima do Evangelho de São Mateus transformado em música e, sobretudo, em alegria. Jesus é interpretado por um rapaz de pouco mais de 20 anos, com uma calça de brim e uma camisa de beisebol azul clara. Incrível a alegria que conseguia transmitir repetindo as velhas frases do Novo Testamento, tão conhecidas e que pareciam inteiramente novas em sua interpretação. O elenco era muito jovem, com aquela pegada e sinceridade que a técnica vai diluindo com os anos. Jesus é levantado por cabos e amarrado a um tronco na cena da Crucificação. Quem eleva o tronco é Judas, que depois ajuda a carregá-lo em triunfo para fora do palco, subindo as escadas do teatro. Chorei lágrimas de esguicho. Aquele é o significado da morte na cruz: o triunfo sobre a dor da condição humana, o triunfo sobre a morte e sobre o medo do devir que nos come os dias. Isso que é o Mito Cristão, não o que ficam cacacrejando os carolas. Mas vou falar mais sobre isso e sobre a peça, até o Natal.

Um comentário:

  1. Não é ruim ser místico, ter um estado de consciência ampliada, não mesmo.
    Talvez seja o melhor da vida já que temos consciência de nossa finitude e limites. Mas acho que o melhor ainda é o diz a canção do Titãs, esse acaso é místico.

    Devia ter amado mais, ter chorado mais
    Ter visto o sol nascer
    Devia ter arriscado mais e até errado mais
    Ter feito o que eu queria fazer
    Queria ter aceitado as pessoas como elas são
    Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar distraído
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar

    Devia ter complicado menos, trabalhado menos
    Ter visto o sol se pôr
    Devia ter me importado menos com problemas pequenos
    Ter morrido de amor
    Queria ter aceitado a vida como ela é
    A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar distraído
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar...

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