domingo, 25 de dezembro de 2011

Natividade

Uma das partes mais terríveis do Velho Testamento (e não faltam partes terríveis nele) é a hora em que Jeová/Elohim expulsa Adão e Eva do Paraíso, proferindo as sentenças definitivas: para a mulher: “Parirás em dor” e para o homem:”Ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Qualquer engraçadinho diria que a sociedade pós moderna venceu as pragas bíblicas, com a Anestesiologia tornando o parto indolor (sobretudo se for no Brasil, campeão mundial de partos agendados). O trabalho que faz o rosto suar diminuiu também nesses tempos de condicionamento de ar. Mas o mais provável é que Jeová não estivesse sendo tão literal assim.
O Mito da Natividade que, sabendo ou não, comemoramos e revisitamos em todos os feriados de Natal, fala do Parto e do Suor. Todo dia nos deparamos com a sequência descrita em outro Testamento, o Novo. Sempre que recebemos uma notícia inesperada, uma doença, um acidente, algo que muda rápida e definitivamente a nossa vida, recebemos a mesma cacetada que uma menina, diante do anúncio de que vai parir, em dor, uma criança. E toda criança, como aquela, é uma Criança Divina. Ao dizer sim, até pela impossibilidade de dizer não, ao que a Vida nos impõe, repetimos o Sim daquela menina. Somos amigos da estabilidade e do previsível, mesmo sabedores que não há o estável nem o previsível. Quando a mudança nos é imposta, pelas circunstâncias ou pela transformação intrínseca à vida, podemos paralisar, ou dizer o que a menina falou na Galiléia. Sim. Essa menina realmente existiu e encontrou-se com o Anjo? Isso, como eu já escrevi em outros posts, é completamente irrelevante. Nesse exato momento em que as pessoas acordam em suas ressacas da Noite Feliz, alguém deve estar recebendo uma notícia que mudará a sua vida, definitivamente. Quando a vida muda, quando a Anunciação se dá, iniciamos uma jornada. Para os junguianos, uma Jornada Arquetípica. A Jornada vai ser carregada de dúvidas, como o jovem rapaz que cogita abandonar a sua noiva para não condená-la. As dúvidas são talvez o maior sofrimento da estrada.
Como o jovem casal, Maria e José, precisamos atravessar desertos para encontrar o lugar. Passamos por desconfortos na era dos confortos, ficamos acovardados ou paramos do lado da estrada, mas sabemos, ou deveríamos saber, que a estrada é nossa, pessoal e intransferível e ninguém pode trilhá-la por nós. Antes de chegarmos ao fim e concluirmos a jornada, parece que tudo joga contra, tudo ameaça dar errado, até o nascimento pobre, num celeiro ou numa maca de um hospital de periferia. O parto de dá, sim, em dor, a despeito das drogas anestésicas. Não há anestesia para a dor de se construir uma vida. Não há carro potente que possa nos poupar do suor de conseguir atravessar as dificuldades e chegar.
A data do Natal nasceu de uma acordo que adequasse o Mito Cristão ao Solstício de Inverno, ou de Verão, de acordo com o Hemisfério do planeta. Isso também é irrelevante. Natividade é todo dia. Amém.

3 comentários:

  1. A Arte de ficar a Sós

    Perdemos a velha arte de ficar a sós e não sabemos o que fazer com a solidão. Não sabemos extrair a felicidade dos nossos recursos internos; por isso, compramos distrações ou recorremos a outras pessoas para nos distrair, momentaneamente. E, não só não sabemos estar a sós, como também não sabemos ficar quietos. Entretanto, se pudéssemos manter o corpo durante algum tempo na mesma posição e usar nossa mente de forma adequada, lograríamos conquistar a sabedoria profunda, digna de ser possuída e saturar nossos corações de paz salutífera.

    Paul Brunton, in O Egito Secreto

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  2. Maravilhoso, Dr. Spinelli !!!

    "as dúvidas são talvez o maior sofrimento da estrada".
    Pois é... acho que dá para eliminar o talvez da frase.
    Não há necessidade de descrever aqui , tudo de bom ou ruim que a dúvida é capaz de nos causar, mas dá para dizer que sofremos com nossos dilemas.

    Sim... "Natividade é todo dia".

    Abraços,
    Sonia

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