domingo, 25 de novembro de 2012

Autismo Virtual

Na década de 40 do século passado, um psiquiatra infantil, uma especialidade nascente na época, chamado Kanner, pegou um termo emprestado à Esquizofrenia, o Autismo, para descrever um transtorno extremamente grave em crianças. Ele usou o termo por observar que as crianças com esse quadro viviam em uma espécie de mundo próprio, com pouco ou nenhum contato ou interesse no mundo exterior. Kanner, influenciado pela Psicanálise da época, acabou levantando uma hipótese que fez muito estrago durante décadas: ele imaginou que o Autismo fosse causado por mães muito duras ou indiferentes a seus filhos: as “Mães Geladeira”. Fico imaginando gerações e gerações de mães se torturando por achar que uma doença que hoje é entendida como um transtorno pervasivo e devastador do desenvolvimento fosse causado por alguma falha em seu afeto ou sentimento pelo filho ou filha portadora dessa condição.
Hoje o autismo é um espectro diagnóstico que abrange muitas causas diferentes, mas nenhuma delas deriva de mães pouco calorosas afetivamente. O que Kanner deve ter notado foi a baixa interação entre a mãe e a criança, muitas vezes derivada da dificuldade da própria criança em se interessar afetivamente pelo mundo exterior.
Não sou psiquiatra infantil e pouco atendi ou mesmo diagnostiquei casos de Autismo em minha vida como médico. Tenho uma opinião que a principal dificuldade ou deficiência de uma criança autista seja a de exploração do ambiente. A presença de um comportamento exploratório é nuclear para todo o nosso processo de aprendizagem. Quem já conviveu com bebês já pode ter observado uma cena inusitada, o bebês brincando e contemplando o movimento da própria mão. Pode passar muito tempo explorando a mistura de visão com a sensação de estar mexendo os dedos, que nessa fase estão completamente desacoplados. Para desenvolvermos qualquer capacidade e aprendizado, precisamos explorar, tentar, errar, tentar de novo, até desenvolver esquemas motores, na infância e mentais, quando adultos, para encontrar saídas para problemas e excelência em nossas capacidades. Uma criança que trabalhe para o tráfico em uma favela pode ter uma capacidade superior a de um arquiteto ou motorista de taxi para construir mapas mentais de caminhos e rotas de fuga dentro dos labirintos de barracos. É um conhecimento muito útil para fugir de perseguidores e salvar a própria vida, além de fazer entregas ou dar recados. A criança pode ser semianalfabeta ou não saber nada sobre a Geografia de seu país, mas domina a Geografia do morro como ninguém. O interesse de fazer parte do grupo, ganhar dinheiro e poder dentro da hierarquia social desenvolve essas capacidades até o nível da mestria.
Há um filme de alguns anos atrás da Pixar - “Wall-E”, sobre um robô obsoleto num planeta Terra que virou um depósito de sucata. A Civilização passou a viver em naves estelares, cada pessoa tem o seu computador e passa o tempo todo em jogos e facebooks interplanetários. As pessoas não se interessam mais por nada que não seja a telinha, estão obesas e sedentárias mas, sobretudo, alienadas dos processos da vida.
A ilusão de que tudo está a distância de um clique pode estar tornando as pessoas mais parecidas do que deviam com a humanidade de Wall-E. O estranho é que nunca tivemos tanta ferramentas para ajudar o nosso comportamento exploratório. Podemos usar as mesmas redes para procurarmos informações, empregos, amor incondicional ou a cara metade, mas isso provoca o efeito paradoxal de sedação de nossa capacidade exploratória, numa espécie de autismo virtual.
Os especialistas, consultores e educadores deveriam virar experts no desenvolvimento dessa ferramenta, fundamental para todo o desenvolvimento da raça humana: a curiosidade.

Um comentário:

  1. Muito bacana o artigo! Já ouviu a música do Sincopatas, Autismo Virtual? Segue link! https://youtu.be/sjw4MrtoPto

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