segunda-feira, 26 de abril de 2010

Diablogs 5 - O menino que perdeu a fé

- Qual a primeira história que você quer?
- Pode ser uma história sobre doença?
- Deixe-me ver... Tem uma que eu gosto muito...
- Como se chama?
- O que?
- A história?
- Ah, sim ... Não tinha pensado nisso... Bem, vou chamá-la de "O menino que perdeu a fé".
- Está me zoando, então.
- (Risos) Não estou não... Vai me deixar contar ou não?
Assentiu, rindo junto.
- Era uma vez um rapaz que muito se incomodava com todas as referências religiosas que havia em minha sala. Frequentemente, alfinetava os terapeutas junguianos como místicos e pouco científicos, eu deixava passar para ver onde aquilo iria dar, até que um dia ele chegou muito mexido na minha sala. Algo de muito diferente ocorrera e ele não queria muito falar no assunto, mas estava tão definitivamente incomodado que acabou tendo que me dizer. O rapaz frequentava uma faculdade noturna e trabalhava durante o dia, era de notável valor e nunca mencionara, talvez por medo de minha reação, que ele sentia sempre um desconforto razoável na aula de um determinado professor. O velhinho era muito querido mas um tanto ridicularizado pela turma, pois começava as suas aulas com um breve momento de oração, uma oração pedindo para que a aula transcorresse bem, para a saúde das pessoas, essas coisas. Os alunos que não quizessem se juntar á oração podiam fazer outra coisa, desde que sem barulho, e a maior parte da turma ligava seus Ipods ou repassavam alguma matéria enquanto o velhinho, acompanhado de alguns poucos alunos, fazia sua breve oração. Pois bem, nas semanas anteriores uma aluna pediu em prantos para que rezassem por sua mãe, que havia sido diagnosticada com um Tumor Cerebral. O professor fechou os olhos e deu a mão para essa menina e meu paciente, ateu convicto, acabou se juntando à oração: O professor agradeceu pela reunião daquelas pessoas, pelo amor da filha, pelos desencontros da vida e, sobretudo, agradeceu pela completa recuperação daquela senhora, mãe de sua aluna. Na semana seguinte a menina falou que um pequeno procedimento havia neutralizado aquele tumor, mas que o médico ficou impressionado com a redução espontânea do mesmo, que ele atribuiu a algum artefato do aparelho de ressonância. Quando ele acabou de contar essa história, perguntei, afinal, porque esses assuntos religiosos ou metafísicos lhe despertavam tanta raiva, tanta aversão? Ele me contou muito a contragosto que quando era criança tinha o seu porquinho da índia, que um dia soltou de forma um pouco imprudente no quintal. O bichinho se enfiou num buraco e até logo, nunca mais foi visto. Com muito fervor, ele rezou, implorou para o seu melhor amigo aparecer, sabia que se havia um Deus, Ele poderia trazê-lo de volta. Ficou doente, chorou por muitas noites e implorou a seus pais que não comprassem outro bicho. Um dia ele parou de orar e de pedir. Nunca mais teve um porquinho da índia, nunca mais pediu nada e passou a acreditar apenas em seu próprio esforço e no que podia palpar. Achou a história do professor uma bobagem, mas uma coisa muito lhe impressionou.
- O que?
- Ele se juntou à oração do professor e pediu, do fundo do seu coração, para aquele grande Silêncio que as pessoas chamam Deus, pediu de coração para ajudar a menina em sua aflição, pois tinha certeza que a sua mãe, como o seu bichinho, não mais sairia do buraco. Foi como se algo tivesse se quebrado dentro dele. Ele negaria até a morte, mas acho que, naquele momento, o rapaz tão ciente de seu ateísmo, sentiu que a pessoa por quem ele orava estava se curando.
Ficaram alguns segundos em silêncio.
- Ele voltou a falar no assunto?
- Não. Ele ficou mais alguns meses comigo e foi transferido para uma cidade do interior, perdemos o contato. Não sei se ele recuperou a fé, não sei como ficou, mas tenho quase certeza que era um ateu de araque.
- Você falou isso para ele?
- Não me lembro.
Ficou um tempo em silêncio, olhando para o nada.
- (Suspiro prolongado) Mas vem cá, o que você chama de fé?
- (Sorriu enquanto tomava fôlego) Fé? Fé é continuar pedindo quando não se é atendido e continuar vivendo, mesmo quando as coisas não são como deveriam ser. Isso é que é a tal da fé.
Sorriu suavemente, desviando o olhar.

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