sábado, 19 de novembro de 2011

Blogstórias 2 O Homem sem Rosto

Aquele já era o quarto ou quinto médico que consultara. Neurologistas, psiquiatras, oftalmos, nada. Os sintomas não batiam. Ele desenvolvera uma cegueira específica. A cegueira para o próprio rosto. Uma anosognosia específica, dizia o médico. Anosognosia é uma incapacidade de identificar rostos. Todos os rostos, não só o próprio. Olhando para a sua imagem refletida em um lago, perdeu a própria face. Como um Narciso às avessas. Ele não se apaixonara por sua imagem refletida, antes percebia, horrorizado, que a sua imagem não aparecia, não era refletida.
Os exames, os mais modernos, os profissionais renomados, nada trazia de volta o seu rosto. Parava nos parques para ver o rosto iluminado das crianças, suas gargalhadas. Podia diferenciá-las, podia enxergar mesmo os brilhos diferentes em cada olhar. Mas não reconhecia mais nos espelhos a sua própria imagem.
Nós passamos a vida em meio a tantos milagres, que para nós é apenas o usual, o comum. Ver a própria imagem, reconhecer-se nos espelhos enquanto o tempo vai nos transformando, dia após dia, mas ainda somos nós que estamos por lá. Estamos acostumados, mal podemos imaginar a incrível sensação de reconstruir, todo dia, nossa imagem. Onde estava o seu rosto, como rever os seus olhos mesmo que eles não lhe dissessem nada?
Como tudo nessa vida, ele tinha a opção de se adaptar, ou não. Ele optou por se adaptar. Era sempre essa a opção. Ele se adaptava, e seguia. Mas a tristeza nunca deixava de acompanhá-lo. A sensação de que algo se perdera.
Cansado de tantos especialistas que simplesmente não sabiam o que lhe dizer, ele finalmente foi procurar um velho com fama de bruxo, bem no meio de montanhas de Minas. O homem ouviu a sua história sem esboçar reação ou estranheza. Todos tinham uma história. Todos tinham um nó, um buraco que não se preenchia. Ele era o Narciso ao contrário. Depois de sua longa narrativa, o homem, finalmente olhou em seus olhos. Chegou a sentir um calor percorrendo o caminho daquele olhar. O seu maior medo, finalmente, apareceu. O medo de todos duvidarem. O bruxo adivinhou o seu pensamento. Perguntou quem realmente duvidava. Os seus olhos se encheram de lágrimas. Ele duvidava. Ele sempre duvidara. Aprendeu que duvidando não iria se decepcionar, não iria mais esperar, como não esperava que aquele homem necessitado de um ortodontista pudesse ajudá-lo. O homem esperou que as suas lágrimas secassem, mandou-o de volta para casa. Nada falou sobre o que fazer, ou como.
Ele voltou para a sua casa desarrumada. Pegou no telefone e ligou para seu filho, que já não ouvia a sua voz há muitos dias. Esperou que sua ex aparecesse para interceptar a ligação, mas por um quase milagre ela estava em outro lugar. Conversou com o menino e sentiu o mesmo calor do olhar do velho. Percorreu o quarto e viu, na foto do seu filho, os seus olhos refletidos.

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