sábado, 5 de novembro de 2011

Um pequeno conto psiquiátrico

Não se lembra mais de quando veio o vazio. Talvez desde a infância, quando de alguma forma já pressentia que estava a mais naquele dourado quadro de família Doriana. Quando a adolescência chegou e ele descobriu-se homossexual, a diferença ficou ainda mais evidente. Todos tinham planos, projetos, metas. Ele só conseguia se sentir como um alienígena naquele quadro de felicidades medianas, de conformidades e de sorrisos estudados. O seu terapeuta tentava dedilhar essas impressões: o que teria acontecido? Por que haveria entre esse rapaz e a sua mãe tamanha sombra? Teria ela desejado abortá-lo, teria sentido em sua gestação uma tarefa que não queria cumprir? O terapeuta sabia dessa transmissão, como um vírus, desse não pertencimento original. O bebê que não vê o seu rosto refletido nos olhos de sua mãe, passa a se acreditar uma parte da mobília, um portaretrato velho e empoeirado no canto da sala. Logo ele aprendeu que uma forma de justificar a sua presença no planeta foi fazer-se útil. Um bom menino, que não jogava bola, não tinha amigos senão os amigos nos livros. Mas ajudava a mãe, ficava como um bicho de estimação por perto ajudando as longas horas de ausência de seu pai. Mas ainda assim a sua imagem não era refletida. A sua mãe fora educada a acreditar que a homossexualidade era uma doença, ou um desvio de caráter. Ainda em dias mais recentes, quando conviviam com o seu quase namorado, tudo ainda parecia caber na moldura de família Doriana. Debaixo dos falsos e aristocráticos sorrisos, a sensação de que aquele rapaz estava só se aproveitando de seu abismal sentimento de solidão, que eles não faziam idéia de onde vinha. Assim como não conseguiram entender quando ele se enfiou num motel barato para se entupir de medicamentos.
Não é possível que em pleno século vinte e um não houvesse um exame que detectasse alguma falha grave, estrutural, no Cérebro desse menino. Uma família bem estruturada, irmãos adaptados e pais zelosos, como que, no meio de tanta perfeição, poderia haver um menino propenso a essas melancolias aterradoras, a esse impulso para sair desse mundo tão lógico?
O terapeuta foi retirado do caso. Não há como explicar a sensação de vazio, a falta de significado, o sentimento absoluto de falta de sentido. Vamos investigar esse Cérebro, esquadrinhar os seus genes, introduzir medicamentos de última geração. Com certeza, há um defeito nesse maquinário que pode ser corrigido, a alegria pode ser finalmente recuperada, os ódios e as mágoas varridas sob o tapete impoluto da sala.
O terapeuta olha para o horizonte. Não muito longe daqui, está se armando uma tempestade. E ninguém parece, ou quer, notar.

Um comentário:

  1. Precisa haver um culpado.
    Essa é uma tendência .
    Alguém ou algo.
    Ninguém quer olhar,
    muito menos sentir.
    Ver, enxergar, já é um estágio acima.
    Ninguém quer ouvir.Escutar então...
    Só há Sentido naquilo que se pode Sentir.

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