sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O Eu e a Ferida

Há um filme de Win Wenders de vinte anos atrás, chamado "Até o Fim do Mundo", um filme que deu origem a um período ruim de sua carreira, após a sua obra prima, "Asas do Desejo". A história era de um homem que criara uma interface entre uma microcâmera e a retina de pessoas deficientes visuais. O personagem principal, interpretado por William Hurt, atravessa o planeta para encontrar esse cientista, pois tem um filho deficiente visual. A máquina também possibilita às pessoas gravarem e reverem os próprios sonhos. O efeito colateral mostrado no filme é que todas as pessoas ficam viciadas nos próprios sonhos e passam o dia inteiro revendo-os e lembrando de sua infância e suas feridas. Choravam pelos abandonos, queriam voltar ao passado para recuperarem o que se perdeu no caminho. Todos viravam dependentes de suas memórias, sobretudo as traumáticas.
Pouco ou nada se fala sobre os efeitos colaterais do processo terapêutico, a psicoterapia de orientação analítica já é tão atacada e achincalhada que os seus praticantes não ficam acrescentando mais pedras ao linchamento. Mas uma das coisas que pode acontecer quando fazemos as nossas viagens no tempo, nas psicoterapias, é exatamente o que é retratado no filme de Win Wenders: uma fascinação e uma fixação às próprias feridas e às feridas do mundo.
Outro dia apontei para uma cliente querida esse efeito horrível, quando a Doença de Pânico virou para ela uma verdadeira obsessão, tudo gira em torno dos pensamentos e da antecipação da doença ou dos sintomas. Como no filme, ela passa muito tempo de seu dia atenta às sensações corporais que possam ensejar ou lembrar uma crise de Pânico. Tudo virou uma sombra de sua doença.
Os jornais de hoje trazem matérias sobre o aumento dos casos de afastamento e de licenças médicas por doenças psiquiátricas. Hoje estamos sempre ouvindo que fulana anda muito "estressada", sicrano está muito "deprimido" ou que a namorada "surtou" com o namorado por uma razão fútil. Os termos antes reservados às doenças psiquiátricas invadiram o senso comum. Irritação, cansaço, fadiga e, sobretudo, uma fascinação cada vez mais crescente com a própria ferida, ou com a delicada autoestima, são drogas pesadas, que as pessoas usam cada vez mais.
Revelar a própria ferida , compreendê-la e transformá-la, são os passos de qualquer psicoterapia bem sucedida. O passo mais importante, talvez, seja parar de procurar culpados e perseguidores, devedores e cobradores, para assumir a responsabilidade pela própria ferida. Como diz a Lei de Spinelli número catorze, ou você dá conta de sua ferida, ou a ferida dá conta de você. (Se parece uma frase de Monteiro Lobato, sobre Brasil e saúvas, não é mera coincidência).

Um comentário:

  1. Bendita seja a "Lei de Spinelli"... tempos atras eu me peguei falando e pensando muito sobre isso, e concordo com você, que não existem culpados, cobradores na responsabilidade de nossas feridas. A responsabilidade é nossa desde o início em reconhecer a nossa ferida,aceitar que ela não pode ser transferida, entregue para outra pessoa, cada um de nós terá como Édipo o seu quinhão, sua parte na Ciranda da existência, sem direito a fazer reclamações de que fomos injustiçados, traídos, etc por pessoas ou situações. Alcançar auto conhecimento, amadurecimento implica em termos algumas doses de sofrimento em nossa jornada. A ferida é a parte que ajuda a nos mantermos alertas, vigilantes, de que temos um trabalho a cumprir e ele é tecido especialmente para cada um de nós, firmando que nossa individualidade é única e intransferível, cabendo a cada um a responsabilidade de se transformar, de tomar "consciência" de nossa sombra... é aqui que de forma benéfica o processo terapêutico surge com sua ação libertadora, permitindo uma maior compreensão de nosso mundo simbólico, enxergar a presença vivamente sentida de um ou mais arquétipos. Esse processo sempre se dá de uma maneira penosa, porque sempre haverá conflitos que nos obrigam a aceitar coisas contrárias, se não avançarmos continuaremos mergulhados em nossas neuroses. Uma contribuição da Lei de Jung ..." muitas vezes o terapeuta deve realizar um trabalho que submete sua paciência ã mais dura prova: a síntese entre consciência e inconsciente ocorrer no processo terapêutico"... isso acontecendo, muito do drama deixa de fazer parte da vida da pessoa.
    Beijo

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