sábado, 14 de julho de 2012

A Balada de Bruno

Acabei de voltar da missa de 7º dia de Leonor, mãe de Bruno, amigo de meu filho e daqui da casa. Esse texto é dedicado a ele.
Quando eu conheci o Bruno, ele tinha uns 11 anos e veio puxar papo comigo depois de uma festa de aniversário do André, meu filho mais velho e na época seu colega de escola. O menino falava sobre Classic Rock e passeamos por Beatles e Deep Purple. Eu olhei para aquele moleque e pensei que a cegonha tinha errado de endereço. Um moleque pré adolescente, precocemente intelectualizado e lendo mais do que devia, me lembrou bem um outro moleque parecido, que acabou virando psiquiatra junguiano.
Encontrei com o Bruno algumas vezes, joguei bola com ele e acompanhei o seu crescimento meio de longe. Deixei-o embaraçado numa apresentação na escola, quando havia alguns Hai Kais que ele compôs e que a professora pendurou no caminho de quem entrava. Disse para ele que havia captado como ninguém o espírito dessa poesia oriental curta e contemplativa. Fiz essa observação a seu pai, que não sabia o que é Hai Kai. Vou levar o moleque lá para casa, dá licença. Mas o pai transbordava de orgulho ao falar daquele filho misterioso, eu decidi não “confiscá-lo”. Há dois anos que o bom e bonachão Cruz, pai do Bruno, teve uma infecção intestinal, que evoluiu de forma esquisitíssima em Septicemia e morreu. Porrada. Ficamos do lado do moleque como deu, ele absorveu o golpe, teve um profundo apoio do pessoal do Colégio Sidarta, de onde meus filhos já tinham saído. A vida continuou. Há uma semana, voltando do feriado, Leonor teve um mal súbito, o carro capotou numa ribanceira. Bruno saiu do carro intacto e órfão de pai e mãe aos 17 anos. O pastor no velório e o padre hoje gaguejaram um pouco diante da tragédia. Reafirmaram a crença no Mistério e na Ressurreição, embora engasgando no que sempre engasgamos, que é no Absurdo. Pais amorosos e que casaram e tiveram esse menino em idade um pouco mais adiantada que a média. Um menino precioso e precocemente centrado. Dois incidentes fortuitos, gratuitos, inexplicáveis. Como falar em Sentido?
O meu filho que anda meio rebelde com a idéia de Deus, está agora francamente emputecido com Ele, o que pode ser até um bom despertar para a idéia e o assunto. A idéia de alguma ordem no meio do Absurdo e do gratuito da morte, bem, isso não é fácil de digerir.Lembrei de um livro de Jung durante a missa. O livro é “Resposta a Jó”. Jung ficou doente, teve uma febre de origem desconhecida e, de repente, teve medo de morrer. Sentou-se e começou a escrever esse livro e só levantou quando o tinha terminado. A febre passou no ponto final. Nesse livro Jung dialoga com o personagem bíblico, atropelado por tragédias e perdas inexplicáveis. Jó também fica emputecido com o Altíssimo e busca, no meio do Absurdo, o Sentido de todo o seu sofrimento. O que aquilo significava? Por que os bons morrem, os maus são recompensados, as famílias são desfeitas, os tijolos de nossa vida demolidos com uma marretada do destino? A esposa de Jó sugere que ele blasfeme e morra. Uma sugestão meio clara de um suicídio, que é uma questão quando estamos perdidos no Absurdo. Jó perguntou se ela estava louca. Morrer não era a questão, mas ultrapassar a Morte, buscar o Sentido profundo da perda, da doença, da dor. No final do livro, Jó consegue contemplar o Ser Divino e provavelmente percebeu como as nossas lágrimas são pequenas diante do oceano da vida e do Ser. A vida tem uma harmonia muito profunda em seus micro movimentos e deve ter sido isso que Jó contemplou. Mas Jung não tinha uma visão assim tão otimista do assunto. O que ele respondeu a Jó é que não é nem um pouco fácil ser um filho bem amado de Deus. Se a vida quer tirar tudo, tira de forma seca, impessoal, implacável. Jung acrescentou ao Deus de suprema bondade esse aspecto devastador da vida que eu vi na face desse menino com as espinhas de sua adolescência. A perda geralmente dá lugar a saltos de consciência e aumenta a nossa resiliência diante das pancadas de nosso Caminho. Mas Jung sugere a Jó que não é nenhuma benção ser o Escolhido. E que a vida quer que a Consciência se expanda, com ou sem lágrimas.
Acredito, como o filósofo contemporâneo Adoniran Barbosa, que Deus dá o frio conforme o cobertor. Espero fazer parte do cobertor humano que se formou em torno de Bruno.

5 comentários:

  1. Muito profundo e tocante o texto.
    É imensurável a dor deste menino, mas a Força e o Amor de Deus, a família, e os amigos, com certeza, irão ajuda-lo a construir sua trajetória.
    Lúcia

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  2. ou...
    Deus lhe obriga a correr atrás do cobertor depois de lhe impor o frio.

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    1. Acho que esses dois comentários resumem muito bem o meu texto: a Divindade que acolhe, mas também a ordem profunda que nos joga dentro do frio, do frio absoluto. Obrigado a ambas.

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  3. Assisti um documentário, faz tempo, sobre uma tribo africana onde não havia palavras para tio ou sobrinho. Por que todas os filhos eram filhos da família e do grupo, e todos os adultos eram pais ou mães. Nessa tribo também não havia a palavra ou aideia de orfão.
    Que o Bruno seja abençoado com os cuidados dos pais que ele encontrar em sua jornada.

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  4. Muito emocionante, ainda mais pra mim que tenho um filho chamado Bruno...

    Força e Paz !


    Edison

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