sábado, 28 de julho de 2012

Carga Alostática

Dei uma aula em um curso de Pós Graduação em Clínica Médica. Achei que era uma turma pequena, de até umas quinze pessoas e preparei uma aula visualizando esse grupo. Eu gosto mesmo é de dar aula rabiscando, fazendo o conhecimento se desenhar gradualmente enquanto as pessoas podem acompanhar o raciocínio. O Power Point tenta reproduzir esses desenhos, mas não é a mesma coisa. Acho que a transmissão do saber é antes de tudo um processo de sedução, de tornar fácil o que parece difícil, de encorajar o aluno a entrar dentro do aprendizado com confiança. Uma vez eu tive um bom arranca rabo com uma pedagoga por mencionar esse processo de sedução. Ela preferia uma formulação mais técnica do assunto. Mas essa é outra história. O fato é que eu cheguei lá com uma aula que delineava alguns conceitos de quadros depressivos e ansiosos, no sentido de convidar os colegas a saber identificá-los e tratá-los, pelo menos não cair no ancaminhamento tipo: "Você não tem nada, vá ao Psiquiatra", que dá ao paciente a impressão de ter um sintoma imaginário e de estar um tanto pirado. Cheguei um pouco atrasado e dei de cara com uma platéia cinco vezes maior do que esperava. Achei que a minha aula soaria meio boba em sua concepção e suspirei imaginando se eu iria ser acometido pelo Affinococus, agente infeccioso que tem acometido o time do São Paulo. O agente faz a gente gaguejar, tremer e concatenar mal as idéias. De fato, o começo da aula foi cheio de afinadas, gagueiras e procura de um caminho para chegar ao público que, felizmente, era receptivo e generoso. Comecei contando um "causo", sempre um jeito de captar a atenção, de um rapaz que eu atendera recentemente, com um quadro de ansiedade que foi cronificando. Ele chegou ao consultório no exato momento em que o quadro ansioso começava a ficar depressivo. Contei o caso achando que não estava sendo muito interessante, mas não deixei o Superego tomar conta. Sabia que uma hora eu e o público iríamos nos aquecer, não fiquei alimentando o medo, não. Para alguma coisa servem os cabelos brancos que estão crescendo nas laterais. O que fez a aula engrenar foi uma pergunta quase imediata, quando falei em Carga Alostática. Um dos alunos, um senhor simpático, me perguntou o que era Carga Alostática. Naquele momento, a aula encaixou. Senti afinidade pelo colega e pela pergunta. Alostase é um conceito relativamente novo, que amplia o conceito de Homeostase. A Homeostase é a tendência do nosso organismo manter um funcionamento estável, com o meio interno e externo sempre em equilíbrio. Acontece que o equilíbrio perfeito é a Morte. Nada muda, nada se perturba, tudo está me perfeito equilíbrio no sistema. Alostase é um conceito mais dinâmico, de equilíbrio no desequilíbrio. Nossos sistemas corporais são atacados por estressores o tempo todo, que produzem alteração genética, imune, inflamatória e hormonal. As nossas células funcionam num conserto aparentemente caótico, mas olhando de forma mais ampla é uma inacreditável estrutura em rede, como se todas as células trabalhando em harmonia estivessem conectadas. A doença se instala quando essa estrutura em rede é abalada por uma agressão, como uma virose, um acidente ou uma crise de Pânico. A Carga Alostática é a carga de estressores ou de agressões que o organismo tem que equilibrar. Outro dia assisti a um filme sobre uma família que passa pela experiência devastadora da morte de um filho adolescente em um acidente automobilístico. O irmão mais velho, John, era uma espécie de ídolo do garoto, titular do time de sua universidade e pensa seriamente em abandonar o esporte, pois o jogo perde o sentido para ele. O filme, "O Número Cinco", é na verdade um ensaio sobre elaboração do luto, de uma carga de estresse que talvez seja a pior de todas: perder um filho. John volta a jogar com o apoio do time e vira uma espécie de líder espiritual dos seus colegas. Mas os seus pais começam a desmoronar. Depois de um tempo lutando contra a dor, a mãe começa a ter crises de Pânico e o pai não tem mais força para lutar contra a tristeza. Todos vão ter que encontrar um jeito de se refazer como pessoas e família. O filme mostra exatamente a reação de um grupo, uma família e as pessoas individualmente diante de uma imensa carga alostática, que é a elaboração da morte de um adolescente. Na aula, não lembrei de dar esse exemplo, mas acho que me saí bem na explicação e aí a aula engrenou, as pessoas ouviam sem sair da sala e até umas piadinhas deram certo. O palestrante também suportou a carga alostática da responsabilidade. A parte realmente legal é chegar à conclusão, que a Medicina Chinesa conhece há milênios, de que todos os sistemas de nosso corpo, todas as nossas células funcionam em rede, e que a boa absorção dos estressores deve fazer parte de toda orientação que um médico tem a oferecer a seus pacientes.

2 comentários:

  1. Olá Spinelli,

    Nós clínicos, que temos nossos conceitos tão fundamentados na homeostase, ficamos (eu, pelo menos) surpresos com este novo conceito de alostase.
    Muito interessante. Terei que ler sobre o assunto.
    Você poderia discutir mais este conceito.
    Obrigada,
    Lúcia Andrade

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  2. Adoraria que estas profícuas industrias farmacêuticas se voltassem para o Affinococus. Tá certo que o mercado não é lá muito promissor, mas facilitaria demais a nossa vida...

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