domingo, 14 de outubro de 2012

Sobre Pastores e Ovelhas

Há um trecho do Novo Testamento, se não me engano antes do milagre da multiplicação dos pães, em que Jesus olha para a multidão e fica tomado pela compaixão, pois pareciam ovelhas sem um pastor. É uma passagem muito bonita e emocionante. Várias vezes Ele se enterneceu com o sofrimento, sobretudo aquele causado pela ignorância e pela dificuldade de achar um caminho que as pessoas tinham há vinte e um séculos. Não que tenha melhorado muito nesse período de tempo, a sensação de não ter um norte continua permeando a experiência humana.
Não sou Jesus, mas acho que tive uma sensação parecida com ele diante da multidão faminta. Estava acompanhando a última mesa redonda do Congresso Brasileiro ontem, justamente uma que abordava a Doença de Pânico. O programa falava em vários aspectos dessa doença que parece moderna mas já era descrita nos tempos de Hipócrates. As aulas foram boas, mas um pouco decepcionantes pelos esquemas interpretativos um pouco antigos da tal Neurobiologia. Vou exemplificar para não parecer, apenas, uma crítica rabugenta. Um esquema mostrava um estímulo que pode desencadear uma crise de Pânico, por exemplo, um lugar muito quente, abafado. As áreas vinculadas ao medo ao nosso Cérebro Emocional interpretam mal essa experiência, gerando preocupação. Essa preocupação vira medo, o medo entra em looping e esse looping leva à crise de Pânico. Errado. A maior parte das crises passam por estímulos que nem são percebidos conscientemente. Um lugar fechado, um engarrafamento, um aumento de frequência cardíaca, algo que nem vai ser interpretado pelo nosso Cérebro Consciente. Vai direto para as áreas do medo, sem que o paciente o perceba. A crise já aparece, de pronto, como um raio adrenalínico atravessando o corpo. O medo vem depois, assim como o looping de preocupação, que faz a crise se espalhar. O esquema do cara era antigo, mas a tentativa era bem intencionada de entender os sintomas. Como o colega estava de passagem marcada, anteciparam as perguntas. Foi aí que ocorreu a cena.
Um colega que é psiquiatra no interior do Brasil, pegou o microfone e fez uma pergunta constrangedora. Contou que tinha um paciente esquizofrênico que estava se isolando progressivamente, recusando qualquer tipo de ajuda. Ele perguntou, singelamente, se a mesa tinha alguma sugestão para o caso. O colega que estava dando aula sobre os sintomas de Pânico, notem. Nada a ver com o pergunta. Ficou num misto de constrangimento e uma irritação discreta. Poderia ter dito que aquilo era uma aula sobre outro assunto, mas acabou frisando que os dados sobre o caso estavam muito resumidos, mas acabou sugerindo uma conduta com antidepressivos e neurolépticos atípicos. Para quem não sabe o que significam esses palavrões, não se preocupe. O fato é que foi uma pergunta sem noção, fora de hora e de lugar e a resposta foi ainda pior. Um esquizo que está se isolando e recusando qualquer tipo de ajuda precisa de investimento humano. A família precisa ser orientada, alguma figura que o paciente respeita ou, na pior das hipóteses, uma intervenção institucional, como um hospital dia ou uma internação, podem ajudar a romper o cerco criado pela doença. Remédios de 200 reais a caixa não seriam a ajuda que médico e paciente precisavam. Mas o colega recolheu-se em sua desesperança e a aula seguiu. Pareciam ovelhas sem pastor.
A Psiquiatria se ressente, como toda a Medicina, de uma visão mais ampla, menos fragmentada, dos casos. O que parece o óbvio para alguns é quase intangível para outros. O colega em sua simplicidade humana e teórica deve ter ficado com aquela dúvida durante todo o Congresso e resolveu externá-la lá exatamente por ser a sua última chance. Fico imaginando-o perdido entre aquele mar de esquemas e teorias, sem entender o básico do que é um paciente esquizo. Deu vontade de comprar uma Kombi e sair pelo país adentro, espalhando Psiquiatria. Recolhendo as ovelhas.

Um comentário:

  1. Comparação perfeita,
    Metáfora mais que apropriada,
    Faltou um pseudônimo para o motorista da Kombi...

    Agora, que não foi coincidência o assunto ser Doença do Pânico no mesmo momento desta DESNORTEAÇÃO toda , isso não foi MESMO !!!!

    Pois afinal de contas não existe algo tão FORA DE LUGAR, PERDIDO, do que o PÂNICO !!! Certamente numa crise de pânico infinitas ovelhas estão profundamente perdidas e famintas por um Pastor.

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