quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Dama do Lotação

Estava arrumando as prateleiras de livros em casa quando caiu um livreto com pequenas histórias de Nelson Rodrigues, dentre elas um pequeno conto chamado "A Dama do Lotação". Acho que Nelson foi nosso primeiro blogueiro, criando personagens imortais em pequenos textos e historietas como essa. A personagem principal é uma mulher de classe média carioca, casada e respeitável que começa a ter uma estranha compulsão sexual, a fantasia de todo usuário de transporte coletvivo: o ônibus lotado, a proximidade dos corpos, ela começa a se insinuar para um desses suarentos passageiros, a coisa vai num crescendo até que descem do ônibus e se fartavam da própria lascívia nos motéis da época, as "garçonieres", pequenos quartos e apartamentos para as escapulidas dos vetustos pais de família. Dia após dia essa mulher multiplicava as suas aventuras para depois voltar para casa, com o sonolento e desinteressado marido que a tudo ignorava em seu orgulho de machão.
Após um tempo, esse homem acaba descobrindo que sua mulher tem essa vida dupla e, ao contrário do homem da época, não decide lavar a própria honra em sangue. Não mata a mulher e nem chega a ser verbalmente agressivo, apenas resolve retirar-se da própria vida. O marido opta por ser um vivo-morto, abandona o emprego e fica prostrado, em casa, deitado sobre a mesa como um cadáver, com a vela nas mãos. A esposa, extremada, passa os dias com as suas aventuras sexuais mas à noite vela o corpo do marido-cadáver-vivo, rezando por ele de forma incansável madrugada adentro.
Nessas útimas semanas temos falado das obsessões amorosas, a distância amorosa como uma forma de dominação, a espera de um companheiro como um sofrimento e quase desespero. Há quase 50 anos o gênio de Nelson Rodrigues já captara essa tendência, vinda com a revolução sexual que na época só se insinuava: a mulher tentando encontrar e manter o homem através da sexualização prematura, as compulsões sexuais e a distância ressentida do homem, cada vez mais despido de seu desejo e virilidade, como o vivo-morto desse conto. A mulher espera e vela por esse homem, esperando por seu despertar.

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