sábado, 6 de novembro de 2010

Transfusão de Serenidade

O termo do título é de autoria de um teólogo e psicoterapeuta de quem eu gosto muito, Jean Yves Leloup. Ele a descreve em um momento particularmente dramático, quando estava à beira do leito de um paciente terminal, que sentia a proximidade da morte e se angustiava profundamente com o momento da passagem. Jean Yves descreve em um livro sobre os Terapeutas do Deserto que o paciente vai se acalmando na medida que o terapeuta faz uma transfusão de serenidade, tocando psiquicamente a alma turbada pelo vazio, até que o paciente começa a descrever uma paz interior, ausente de medo.
Lembrei desse trecho na apresntação de Flávio Kechanski, já citada na última postagem, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Fortaleza. Para quem não me conhece, sou psiquiatra e psicoterapeuta de orientação junguiana. No congresso não há portanto nenhuma palestra que eu não sofra uma alfinetada. Entro na apresentação da Sociedade de Psicoterapia e o palestrante fala de um caso onde a paciente tinha um quadro depressivo que respondia mal aos psiquiatras biológicos desalmados, interessados em diagnosticá-la e entupí-la de medicamentos, sem perceber que a paciente estava presa numa simbiose familiar, os pais inteiramente dependentes dela, por isso os remédios não faziam efeito. O terapeuta atento e arguto começa a trabalhar na simbiose, a paciente melhora da depressão. O terapeuta mantém os medicamentos estabilizadores do humor, mas fala disso com um tom de quase displicência. Na outra sala, outro colega descreve como seu paciente estava perdido na selva de psicoterapeutas inoperantes e autorreferentes, até finalmente ser salvo pela medicação potente e heróica que seu psiquiatra introduziu, dando finalmente ao paciente a estabilidade de humor que necessitava. Percebe, caro leitor? É pancada de cá, pancada de lá.
Há alguns anos a Folha de domingo fez uma matéria de capa: Dr Freud ou Dr Prozac? A resposta é muito simples: Dr Freud E Dr Prozac. Todas as evidências mostram há muitos anos a eficácia maior do trabalho combinado, mas os xiitas de lado a lado continuam trocando suas farpas, suas acusações.
Na palestra de Flávio Kechanski, ele rechaçou com elegância a eficácia das terapias de base analítica em pacientes dependentes de crack nas fases iniciais de tratamento. Isso faz todo o sentido, pois o foco inicial é a desintoxicação e recontrução gradativa de uma psique despedaçada por uma das drogas mais potentes à disposição dos dependentes, o crack. Flávio destacou também a importância do uso de tratamentos baseados em evidências no tratamento desses casos graves. A psicoterapia de base analítica, subentende-se, baseia-se em sistemas teóricos nem sempre baseados em evidências. Podemos discutir isso em outra ocasião, mas também posso aceitar a colocação. Só que durante a sua apresentação, que, o leitor pode notar, gostei muito, Flávio descreveu uma enfermeira de sua equipe que consegue reverter quadros de agitação psicomotora jogando cartas com o paciente, até que ele consiga novamente centrar-se. Aí o raciocínio vai todo para as cucuias, para não usar outro termo. A enfermeira tranquilizando um paciente agitado apenas na base do carteado não está usando uma Terapia Cognitiva baseada em evidências. Está fazendo, isso sim, uma transfusão de serenidade, como fazem os bons psicoterapeutas. Seja por transmissão eletromagnética de afeto, seja por informação não local, seja pelo mecanismo metafísico pouco baseado em evidências e muito em vidências que caracteriza uma boa relação terapêutica.
Coloco isso apenas para abrirmos mais o leque de possibilidades quando um ser humano se debruça sobre o sofrimento de outro ser para tentar ajudar, tentar transfundir a serenidade que pode mesmo faltar para si. Se vai se usar mais ou menos a técnica, seja ou não a técnica baseada em evidências, o fato é que as transmissões não locais de alma para alma ampliam muito a nossa capacidade de ajuda. E de entendimento.

Um comentário:

  1. Transfusão de serenidade.Quantas vezes,tão importante como uma transfusão de sangue.Um sopro de vida e ar fresco.
    Uma questão de sensibilidade, de bom senso, de vontade.
    Capacidade da alma.
    Absolutamente sensacional.

    Abracos,
    Sonia

    ResponderExcluir