domingo, 31 de julho de 2011

A Origem 2

- Então...
- Pois é.
- Assistiu o filme?
- Cheguei tarde em casa, consegui assistir até a metade.
Fez uma careta.
- Desculpe.
- Deixa pra lá. Hoje é o último dia de Julho, é o fim de nosso prazo, mesmo.
- Espera aí.
- O que?
- Você vai desistir?
- Desistir do que?
- Você vai desistir de conversar comigo sobre esse filme?
- Quem está desistindo aqui?
Mordeu os lábios, irritada.
- Você pega pesado comigo.
- E você? Quer ou não quer minha ajuda?
- Claro que quero.
- Então precisa colocar mais energia nesse sistema. Se eu mandei ver o filme, não é para ficar brincando na internet, é para ver o filme. Estamos entendidas?
- Sim, senhora.
- Para começo de nossa conversa, qual o título melhor? O brasileiro ou o original?
Fez uma cara de "O que?"
- Qual título é melhor: "Inception" ou "A Origem"?
- Você não gosta sempre do título em inglês?
- O problema é que não estou discutindo o meu gosto pessoal, mas qual título fala melhor sobre o filme.
Mordeu os lábios, de novo.
- "Inception" é melhor.
- Por que?
- Porque se refere à linha central do filme: entrar dentro dos sonhos de uma pessoa, cada vez mais profundamente, para inserir uma idéia. Uma idéia que pode mudar o destino do mundo.
A velhinha sorriu, suavemente.
- Gostou?
- Gostei.
- Qual o título que você prefere?
- Eu gosto dos dois, na verdade. O primeiro é isso mesmo, uma inserção que pode ser uma concepção. Nisso se baseia toda a Psicologia das Massas e até a publicidade.
- Como assim?
- Não tem nenhum momento do dia em que não tentem fazer a inserção de uma idéia nas suas redes neurais, meu bem. Compre isso, seja aquilo, tenha essa aparência, esse tipo de vida. Toda hora o seu Cérebro é bombardeado com novas necessidades e conceitos que a gente nem percebe. A Inception é o sonho de todo sistema totalitário: entrar no Inconsciente das pessoas e colocar lá as idéias que o Big Brother quiser. Só está faltando que os nossos sonhos sejam patrocinados. Vai de Visa, Go!
Risos.
- E o título em Português?
- Eu gosto dele. Olha que é difícil eu gostar de um título brasileiro. "A Origem" tem a ver com a tensão que você deve estar vivendo no fim de seu curso.
- Como assim?
- Você gosta dessa pergunta, não é? Como assim, como assim?
- Dá para responder, por favor?
- "Inception" é o sonho da Psicologia Comportamental-Cognitiva: se eu programar direito as redes neurais do freguês, todos so sintomas vão embora. O terapeuta é uma espécie de gestor de redes neurais defeituosas. Você deve estar sendo bombardeada por esse povo na faculdade, dizendo que é a única científica e bláblablá...
- Estou achando que você não é só psicoterapeuta: é professora de faculdade aposentada.
- Eu sou apenas a paciente 46.
- Estou sabendo. Ok, então. Inception é Comportamental. É o bom e velho Pavlov tentando enfiar idéias na minha cabeça. E "A Origem"?
- "A Origem" é pura Psicologia Profunda, meu bem. Só nos níveis mais profundos do Inconsciente que vai se buscar a origem dos sintomas. Enquanto não se desata o nó que está lá no fundo, não tem incerção de nada.
- De qual nó você está falando?
- Um personagem quer recuperar a liberdade e ver os seus filhos de novo. Enquanto ele não descer ao quarto círculo de seu inferno inconsciente e não elaborar o luto da morte de sua esposa, que ele causou indiretamente, não vai conseguir nada. Essa é "A origem" de todo o seu sofrimento. Ele está preso na própria culpa e no luto, não consegue retomar o contato com a própria vida.
- E o japonês?
- O japonês está preso dentro de sua necessidade absoluta de poder, de interferir e comandar. Termina preso numa ilha, envelhecendo solitário e miserável dentro do seu complexo de poder. Ele precisa ser salvo unicamente porque o personagem do Leo di Caprio precisa dele, senão iria ficar preso para sempre no seu inferno pessoal.
O rosto da moça se abriu de repente, como se tivesse finalmente, compreendido algo muito importante.
- Você está dizendo que, se a terapeuta não vai lá no fundo do Inconsciente, se não vai até a origem dos sintomas, as coisas não mudam realmente?
- Não fui eu quem disse, meu bem: foi um sujeito chamado Sigmund. E depois dele, muita gente confirmou a teoria.
- Menos a Ciência.
- Até a Ciência. Mas falamos disso em outro dia. Por hoje já falamos bastante.
Sorriu, satisfeita com a conversa.
- Você vai assitir o filme?
- O que você acha?

Um comentário:

  1. Temos desprezado sonhos, o diálogo conosco, com a única pessoa presente a todas as cenas do nosso drama. Vivemos uma cultura que enfatiza o "Reality Show",(construímos uma vida que delegamos, vivemos uma vida artificial, com valores de outra pessoa). Renunciamos à esperança por profundidade, conexão, significado. O que não nos falta é distrações e seduções oferecidas pela mídia popular que oferece mais fantasia, mais autoilusão.

    Como você afirma: "só nos níveis mais profundos do inconsciente que se vai buscar a origem dos sintomas"... enquanto isso, vivemos os sintomas das patologias modernas: da dependência, desejo, narcisismo, hedonismo, materialismo. É preciso uma disposição titânida pra se viver num mar inconsciente de altas doses de ansiedade que a cultura nos oferece; "Sensações", anestésicos de todo tipo, e tudo isso, pela razão de que ignoramos nossa história e as inúmeras pistas que ela nos oferece uma oportunidade de renascer e tomar consciência.

    Deixo Bhagavad-Gita como estimulante para a diminuir o anestesiamento :)

    "É melhor executar a própria tarefa
    não tão bem do que fazer perfeitamente
    a do outro: você está a salvo de prejuízo
    quando faz o que deve fazer."

    Namastê !
    Lú Magalhães

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