quarta-feira, 28 de março de 2012

Blogstórias: O Espelho Quebrado

Muito cedo ela descobriu que tudo dependia de seu esforço. O fato de ser uma boa aluna tornava a ausência de seus pais ainda mais profunda. Ela é ótima, não dá trabalho nenhum, falavam nas festas de família. Quando a adolescência se fez, ainda teve a agradável surpresa de ver-se desejada, idealizada pelos caras. Logo virou a gostosa da escola. Descobriu que poderia virar o que quisesse antes de voltar para casa e encontrar a sua mãe rindo para a TV e seu pai perguntando sempre as mesmas coisas, algo sobre as suas notas, e só.
No passar dos anos, aprendeu a refletir, exatamente, o que o outro queria ver. Ótima aluna, boa profissional e cada vez mais linda. A sua carreira cresceu junto com os seus cuidados com a aparência. Um ritual de mais de uma hora preparava o seu dia, sempre bela, sempre desejada. Mas uma pequena fresta, uma pequena fenda, sempre ficava debaixo da maquiagem. Uma sensação incômoda e a princípio suave de vazio. Como uma coceira, o vazio estava lá. Procurava no glamour, na popularidade renovada entre os caras e nas amizades vazias com as meninas a sensação de alguma proteção. Mas nada parecia conter aquela coceira, aquela pequena fresta onde se inseria a dúvida. Noites de chocolates e álcool ameaçavam aquela imagem perfeita. Quando o sono ficou finalmente caótico e seus dedos tremiam nos teclados dos smartphones, ela resolveu procurar ajuda. O consultório não tinha tanto glamour, a medicação trazia estranhos efeitos colaterais, mas uma coisa era mais aterrorizante do que todas as outras: os olhos da pessoa que se colocava na sua frente não pareciam se deter em sua beleza, nem em suas tiradas elegantes. O sujeito que estava na sua frente estava interessado na sua coceira, na fenda que parecia parir um ser monstruoso. Pela primeira vez, ela não era a gostosa do escritório, mas uma mulher só, fragilizada e incrivelmente necessitada do olhar do qual ela tentava fugir. Mas não seria pega sem luta. Faltou às consultas, zombou das interpretações, parou com os remédios. Aquele sujeito olhava para isso com uma ironia paciente, insuportavelmente paciente.
Um dia, ela sonhou que o vazio que tanto odiava estava quase palpável ao seu lado. Pela primeira vez, não quis fugir desse vazio, nem entupi-lo de junk food. Pela primeira vez, ela percebeu que, se parasse de fugir, ela não seria engolida, nem pela angústia, nem pela dor. Naquela tarde, sentiu-se quase tocada pelo olhar do terapeuta. Por um momento, sentiu-se mais do que a mulher maravilhosa.

4 comentários:

  1. O texto de me lembrar da pintura
    "As três idades da mulher"
    http://www.photosmarval.org/images/peintres/art-nouveau/gustave-klimt-05.jpg

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  2. Obrigado pelos comentários, caros anônimos.

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  3. Fico feliz que tenha gostado!

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