domingo, 30 de setembro de 2012

Tocáveis

Um filme francês estourou surpreendentemente na bilheteria, ganhando o circuito das grandes redes, um feito para poucos que conseguem atravessar as barreiras do cinemão americano. O filme é “Intocáveis”, o que sugere mais um remake da saga de Elliot Ness contra Al Capone, mas não é nada disso. O filme conta sobre o encontro improvável de dois deficientes: um social e outro físico. Um imigrante, recém saído da prisão, passa por uma entrevista para cuidar de um tetraplégico, um homem rico que nada sente abaixo da linha do pescoço. Daí a delicadeza do título. De certa forma, a marginalidade física e social não permite a ambos o toque humano. São solitários, isolados do mundo, uma fonte de sofrimento bem comum em nossos dias. Driss, um senegalês abusado, quer apenas provar que passou por entrevista e foi reprovado, para continuar recebendo o seu Seguro Desemprego. Um diálogo ácido entre eles se dá quando Phillipe, o rico cadeirante, pergunta a Driss como é viver dependendo dos outros. Ele responde de primeira: “Me diga você”, pois ele está cercado de enfermagem e serviçais. Quando Driss aceita trabalhar para Phillipe, a relação vai ser pautada por esse constante embate de homens inteligentes e feridos, sempre dispostos a sacanear um ao outro, o tempo todo. O que poderia descambar para um dramalhão ou um filme edificante acaba criando cenas engraçadíssimas do óbvio contraste entre eles e suas vidas, com o negão (desculpe, o afrodescendente) pintando e bordando naquele mundo empolado dos aristocratas. Como todo processo terapêutico, ambos saem transformados do encontro, mas isso eu vou deixar para quem ainda não viu poder saborear no cinema.
Estou lendo um paper sobre os avanços da neurobiologia e suas implicações para a psicoterapia. Uma, evidente, vem sendo observada na multiplicação dos cursos de Coaching e na influência que isso vai começar a ter nos próximos anos. O termo representa Treinamento, o Coach é o Treinador, o Coachee é a pessoa a ser treinada. Como tudo nessa vida, isso pode trazer um trabalho positivo, de intervenção estruturada nos sistemas de crenças disfuncionais, ou pode abolir a subjetividade humana. Você parte do mesmo princípio de todas as Psicologias, de que você é fruto de uma família e uma sociedade que incutem uma série de crenças compartilhadas e formas de ver o mundo. Pode parecer louco para nós que um menino de quinze anos detone uma carga de explosivos em seu corpo, matando dezenas de inocentes, por acreditar que aquilo é melhor para o seu povo e para o seu Deus. Isso está estabelecido em seu sistema de crenças. Menos dramáticos são nossos hábitos, que criam uma rede de funcionamentos quase impossíveis de se mudar. Um deles é a crença que vamos continuar ganhando peso gradativamente no decorrer de nossas vidas se continuarmos com o mesmo padrão alimentar, e não mudamos esse padrão. Parece impossível fazê-lo. O Coaching vai tentar mudar essas características através do desenvolvimento de outras alternativas de interpretação dessas crenças. Talvez um menino bomba pudesse ser ensinado a vencer os invasores através da educação de outras crianças e do ensino do amor que está descrito no belo Alcorão. É difícil, mas é possível. A neuroplasticidade mostra que podemos modificar essas redes neurais, num sistema de aprendizagem.
O que me incomoda nessa aparente onipotência de Logos, o Cérebro racional tão longamente desenvolvido e glorificado em nosso tempo, é a ingenuidade, tantas vezes abordada nesse blog, de se achar que podemos fazer alguma mudança em nossa vida só pelo viés da racionalidade. Querem um exemplo? A partir de amanhã vou começar novo regime, vou me exercitar mais e assistir menos televisão. Essa é a decisão correta e racional de se tomar, é só aplicá-la. Fácil, não?
O encantador no filme francês, o que talvez explique seu sucesso inesperado, é a descrição de como o afeto, os encontros de alma, podem ser o impulso para o enfrentamento de nossos medos mais profundos. Driss e Phillipe desafiam, um ao outro, o tempo todo, a enfrentar os próprios medos e as próprias limitações, para modificar, a partir do desencontro e também do desconforto, os seus padrões. Esse não é um sistema que pode ser programado, ou controlado por Logos. É a força inerente à vida, que Logos não pode captar.

2 comentários:

  1. BON JOUR !((como o maravilhoso e significativo filme é francês ... e uma língua muito admirada e estudada por mim, lá vai...))
    Preciso ler e ler esta post...inúmeras vezes se for preciso ...e ainda mais um pouco à cada dia.
    Já era de se esperar ( ia introduzir esta frase com "não sei por que", mas decidi não ser hipócrita no mínimo), que este BLOG iria fazer parte da minha rotina, assim que descobri sua abençoada existência.Só não tinha tido tempo ainda de degustá-lo com mais preparo . Pois afinal, para todas as coisas IMPORTANTES é preciso aprontar-se, apresentar-se nos devidos conformes.

    Penso que foi fundamental todos estes anos de abstinência Junguiana, teórica, claro! porque na prática ela permeia tudo e todos em minha vida.

    Como você mesmo disse, hoje é segunda-feira, vou tentar captar a força que Logos não pode... Vou no fundo mais fundo das minhas entranhas, no meu mais dolorido desencontro comigo mesma...

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